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O seu portal informativo sobre alimentação, nutrição e educação

Regimes alimentares e questões agrárias

Reproduzido do site da Editora UNESP, publicado em 27 de fevereiro de 2017.


Pesquisador da Universidade de Cornell analisa as relações agroalimentares em escala global a partir do conceito de regime alimentar, que articula produção e consumo de alimentos com acúmulo de capital

capaEm 2009, existiam cerca de um bilhão de famintos ou subnutridos no mundo. Cerca de três quartos destas pessoas viviam na zona rural. Trata-se de uma crise alimentar que, desde o começo do milênio, gira em torno da política dominante das relações alimentares, de uma cadeia de interesses que, por meio da mercantilização, transforma as culturas agrícolas ao redor do mundo. Neste cenário, em Regimes alimentares e questões agrárias, que a Editora lança em coedição com a Editora da UFRGS, Philip McMichael articula estas e outras questões em uma interpretação das relações entre os problemas alimentares, as estruturas de produção e o consumo de alimentos na ordem capitalista global.

Para isso, McMichael utiliza o conceito de regime alimentar, instrumento analítico usado para demonstrar como a produção e o consumo de alimentos são direcionados para o acúmulo de capital. Faz isso comparando três períodos distintos: o imperial, dominado pela Inglaterra entre 1870 e 1930; o intensivo, centrado nos Estados Unidos entre 1950 e 1970; e o corporativo, comandado pelas corporações entre 1980 e 2000.

Trabalhando com o significado político das relações agroalimentares em escala global, descortina com perspectivas alternativas, em especial as baseadas na soberania alimentar, para propor soluções aos problemas gerados por estes regimes, principalmente a questão da fome como um fenômeno predominantemente rural. Como coloca o pesquisador Eduardo Paulon Girardi no prefácio dessa edição brasileira, Regimes alimentares e questões agrárias “permite que o leitor compreenda que o que chega ao seu prato (o que, quanto e com qual qualidade) não é exatamente fruto de sua própria escolha e muito menos da escolha dos agricultores, mas sim é determinado por projetos muito mais amplos que submetem países, povos, agricultores e consumidores às necessidades do processo incansável de acumulação do capital”.

Regimes alimentares e questões agrárias integra a série Estudos Camponeses e Mudança Agrária, resultado de uma parceria entre a Editora Unesp, o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais, a Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial, o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), a Coleção Vozes do Campo, a Editora da UFRGS e a Série Estudos Rurais, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural.

Sobre o autor – Philip McMichael é professor do Departamento de Sociologia do Desenvolvimento da Cornell University e autor de Settlers and the Agrarian Question: Foundations of Capitalism in Colonial Australia (1984) e Development and Social Change: A Global Perspective (2012, 5.ed.).

Título: Regimes alimentares e questões agrárias
Autor:  Philip McMichael
Tradução: Sonia Midori
Revisão Técnica: Bernardo Mançano Fernandes e Sergio Scheider
Número de páginas: 256
Formato: 14 x 21 cm
Preço: R$ 48,00
ISBN: 978-85-393-0597-1

Sistema educacional e transformação social

Este texto é parte do artigo “Contribuições de uma perspectiva revolucionária para o debate sobre educação” presente na Revista “Educação e luta de classes”. Publicado originalmente no site Esquerda Diário, em 09/08/2016.


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Por João de Regina e Aline Guerra

A massificação da educação no capitalismo longe de significar sua universalização, significou a criação de sistemas educacionais altamente estratificados. As escolas públicas precarizadas garantem o ensino da grande massa da população e alguns centros de formação distantes aos trabalhadores garantem ensinos que são como base para profissões liberais. Conforme os jovens vão crescendo, provas e concursos os selecionarão para determinadas profissões. Alguns estudantes de escolas privadas, e os melhores de algumas escolas públicas, garantem seu acesso a “boas universidades” – algumas públicas, outras privadas – filhos dos grandes ricos possuem seu acesso garantido em universidades no exterior ou centros de excelência privados e públicos no Brasil. Essas universidades garantem a qualificação profissional de cargos que são vinculados aos conhecimentos complexos, aos altos cargos de gerência, administração, da burocracia estatal e empresarial, ou às “profissões científicas”. Uma parcela bastante pequena da população, após passar seus 20 anos de “carreira educacional”, poderá ocupar estes lugares e se sentirem próximos dos meios burgueses, devido seus altos salários.

Em compensação, os trabalhadores desde cedo precisam combinar o estudo às mais diversas estratégias de trabalho; conviver no ambiente escolar com as penúrias de sua vida cotidiana: violência, fome, desemprego dos pais, trabalho doméstico, doenças, precarização geral da vida; como se não bastasse estar distante das consideradas “escolas de excelência”, a forma em que lhes é exigido o sucesso escolar é incompatível com sua vida; estudar alguns anos em cursinhos para entrar em uma universidade de excelência lhes é um empecilho frente às necessidades de trabalho que já lhes são impostas na adolescência, e muitas vezes antes. Como o mercado lhes exige determinados níveis de qualificação profissional, alguns destes jovens batalham para combinar o cotidiano escolar a cursos profissionalizantes e técnicos, buscando os cargos com salários um pouco melhores no mercado de trabalho. Entre os cursos técnicos os jovens se deparam novamente com os cursos de excelência com processos de seleção e os considerados de não tão boa qualidade. Assim, os sistemas educativos nos países capitalistas, utilizando os mais variáveis mecanismos, são verdadeiras máquinas de divisão social. O critério ideológico desta divisão é o mérito.

 

“… os sistemas educativos nos países capitalistas, utilizando os mais variáveis mecanismos, são verdadeiras máquinas de divisão social”

 

Uma das formas de justificação deste sistema de estratificação é a valorização abstrata do conhecimento intelectual combinada com a ideologia da neutralidade escolar. Por um lado, a escola ensina que este conhecimento é a base de toda profissão e que o sucesso na vida dependerá da aptidão dos jovens nestes ensinos. Logo, nada mais natural que aqueles não bem sucedidos ocupem os cargos que menos necessitam qualificação que, consequentemente são consideradas as profissões de menor prestígio social. Ora, esta ideologia joga para as costas do próprio jovem o fracasso escolar.

Combinado a isso, a escola se apresenta como neutra, desvinculada da política aparenta não tomar lado nas principais questões sociais e políticas da vida. Esta é a principal causa do porque a escola é uma instituição estranha e opressora à grande maioria dos jovens.

Sobre este ponto, Nadežda Krupskaja escreve: “A escola, a pretexto de ser neutra, não aborda as questões que estão na base da existência das crianças, acima de tudo das crianças proletárias: os salários, as greves, o desemprego, as guerras coloniais. Tal escola transforma-se “numa escola de silêncio para a criança, uma escola de morte” (citado em [Georges] Snyders).

Educação e a luta contra o Estado burguês

Existem, pela direita e pela esquerda, ideologias, teses e teorias que apostam em novos modelos de educação capazes de formar novas consciências como pressuposto para o surgimento de uma nova sociedade. O marxismo combate tais visões como expressões idealistas, não porque considera a educação simples determinação da economia, mas concebe de maneira dialética que não existe socialismo e nenhum tipo de emancipação humana por fora do fim do capitalismo e do estabelecimento de uma sociedade sem classes. Marx, no Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, estabeleceu tal relação da seguinte maneira:

 

“Por um lado é necessário modificar as condições sociais para criar um novo sistema de ensino; por outro falta um sistema de ensino novo para poder modificar as condições sociais. Consequentemente é necessário partir da situação atual”

 

A primeira luta de Marx e Engels, portanto, foi contra as formas de socialismo utópico e diversas leituras que buscavam respostas no campo da educação, da ciência ou mesmo formações sociais, deslocadas do movimento real histórico – nesse sentido não se embatiam contra o Estado burguês. Muitos dos socialistas utópicos consideravam que o desenvolvimento da ciência, da educação e de modelos de organização democráticos dariam o exemplo que mostrariam na prática “a verdade” de que o socialismo era mais viável. Desconsideravam que o desenvolvimento histórico influenciava os interesses sociais que tornavam as principais classes no capitalismo antagônicas. Não perceberam os socialistas utópicos que “a verdade” das armas da crítica do socialismo só seria provada pela crítica das armas. Saint-Simont chegou a conclamar “a tomada do poder pela ciência” e outros teóricos, como o alemão [Werner] Sombart, bem menos críticos ao capitalismo que os socialistas utópicos, contra os revolucionários afirmaram: “Como queriam eles arrancar pela luta aquilo que deveria ser provado?”

Marx e Engels combateram, ao mesmo tempo, as teorias idealistas que consideram possível transformar a consciência por fora da transformação das condições de existência, quanto às teses de um materialismo contemplativo, onde não existe espaço para ação humana transformadora. Nas teses sobre [Ludwig] Feuerbach, os fundadores do comunismo irão encontrar a síntese entre a compreensão de que “a existência determina a consciência” e de que os homens através da práxis podem transformar o mundo ao qual fazem parte.

 

“A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado .(…) A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como práxis revolucionária”

 

Mas não foi apenas com as formas utópicas em que se travou o debate teórico e político. Mesmo no interior das organizações socialistas, Marx travou importantes batalhas. Um exemplo ilustrativo se deu em sua luta contra a corrente de Lassale na Crítica do Programa de Gotha. Neste, Marx combatia um programa que expressava uma adaptação ao Estado burguês e uma concepção reformista e oportunista das lutas operárias. Marx fez questão de demonstrar como o programa levantado pelo Partido Alemão se limitava aos limites impostos pelo Estado burguês.

Um dos pontos que Marx vai criticar está exatamente na forma como o Partido Operário Alemão levantava a bandeira da universalização da Educação: “O Partido Operário Alemão exige, como base espiritual e moral do Estado: Educação popular universal e igual sob incumbência do Estado. Escolarização universal obrigatória geral. Instrução gratuita”. Marx defendeu que tal programa colocado genericamente defendia, em última instância, uma educação feita pelo Estado burguês: “Educação popular universal igual? O que se entende por essas palavras? Crê-se que na sociedade atual (e apenas ela que está em questão aqui) a educação pode ser igual para todas as classes?

O programa não evidenciava a principal questão levantada por Marx, a educação no capitalismo corresponde a este modo de produção. Logo não pode ser uma educação igual a todas as classes. Depois o programa conclama para o Estado o papel de educar a população e Marx estabelece:

 

Absolutamente condenável é uma “educação popular sob incumbência do Estado”. Uma coisa é estabelecer, por uma lei geral, os recursos das escolas públicas, a qualificação do pessoal docente, os currículos, etc, e, como ocorre nos Estados Unidos, controlar a execução dessas prescrições legais por meio de inspetores estatais, outra muito diferente é conferir ao Estado o papel de educador do povo! O governo e a Igreja devem antes ser excluídos de qualquer influência sobre a escola

 

Marx mostrava que, ao levantar a questão da universalização da educação desligada das questões concretas das condições sociais, da sociedade de classes, não evidenciavam o fundamental: que a classe operária precisa ter um projeto pedagógico distinto da burguesia. E que essa universalização precisa ser feita pelos operários e suas lutas e não poderá ser feita de forma definitiva pela burguesia e este Estado. O nível de abstração do programa em torno da educação poderia acabar por deixar o partido alemão a reboque dos projetos de expansão educacionais encampados pela própria burguesia.

A Comuna de Paris como inspiração

Se olharmos a primeira experiência de poder operário da história (a Comuna de Paris, de 1871), perceberemos que os revolucionários que participaram dela compreenderam esta questão rápido. Ainda que a Comuna não teve tempo para reestruturar o sistema de ensino ela percebeu a necessidade de tirar o sistema educacional das mãos da classe dominante e questionar seus preconceitos de classe e sua ingerência governamental:

 

A comuna ansiava por quebrar a força espiritual de repressão, o “poder paroquial”, pela desoficialização e expropriação de todas as igrejas como corporações proprietárias. Os padres foram desenvolvidos ao retiro da vida privada, para lá viver das esmolas dos fiéis, imitando seus predecessores, os apóstolos. Todas as instituições de ensino foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo purificadas de toda a interferência da Igreja e do Estado. Assim, não somente a educação se tornava acessível a todos, mas a própria ciência se libertava dos grilhões criados pelo preconceito de classe e pelo poder governamental

 

A Comuna de Paris nos deu sinais para compreender quais são os métodos com que a classe operária precisará da escola. Colocar as instituições e instrumentos escolares nas mãos dos professores e do próprio povo com seus mecanismos de democracia direta é a possibilidade de evitar a fragmentação que a burguesia impõe ao sistema educacional. Ao mesmo tempo, a Comuna mostrou a necessidade de a classe operária ser intransigente sobre a existência de apenas um sistema educacional de massas que não possibilite nenhum tipo de apropriação privada.

Além de desvincular a educação da lógica burguesa, a Comuna de Paris nos legou uma herança de combate que ainda segue vigente: a sua libertação da influência religiosa. Isto que em tese foi uma reivindicação da própria burguesia na revolução francesa adquiriu uma vida extremamente instável no capitalismo. A burguesia, para continuar seu poder, precisa se combinar também com o que existe de formas e instituições ideológicas das mais atrasadas, como é o caso das igrejas. Mesmo nos países mais avançados, o Estado e a Igreja se unem periodicamente para diminuir a importância desta conquista social que é o ensino laico. Mesmo na França, um século após a revolução francesa, o Estado quis novamente responsabilizar os padres pelo ensino da população camponesa.

 

Mesmo nos países mais avançados, o Estado e a Igreja se unem periodicamente para diminuir a importância desta conquista social que é o ensino laico

 

Nos Estados Unidos não é incomum descobrirmos a existência de discursos criacionistas e antidarwinistas nas escolas. Nos países subdesenvolvidos a ideia de um Estado e uma educação laicos é uma realidade ainda mais instável. O Estado burguês nestes países nunca chegou a ter um enfrentamento direto com a Igreja. Pelo contrário, considera-a como uma instituição social e através de incentivos fiscais garante seu fortalecimento e a propagação das suas ideias. Com esses incentivos às igrejas, atualmente com ênfase nas evangélicas, ganham espaços dentro das escolas. A presença das igrejas dentro da escola fortalece seu prestígio fora, e como ela ganha as famílias fora da escola, ela se fortalece dentro.

Por outro lado, o capitalismo também sabe mistificar a própria ideia de laicidade e transformá-la a seu favor. Comumente o Estado fortalece as religiões de origem cristã e, como estas estão mais intrincadas com o cotidiano capitalista, utilizam o discurso da laicidade para oprimir as populações imigrantes e as religiões de minorias políticas. Compreendemos que só um ensino laico garantido pela classe operária e pela expropriação econômica e política das igrejas e negócios religiosos poderemos acabar com a influência dos preconceitos religiosos. A burguesia não pode cumprir até o final nem suas primeiras e mais importantes reivindicações progressivas!

A luta de classes na escola e a luta pela apropriação dos saberes produzidos pela humanidade

As teses céticas sobre a escola e educação chegam, muitas vezes, à ideia de que não existe nada no conhecimento atual que a classe operária e a revolução precisarão se apropriar e utilizar. Consideramos tal visão idealista e a-histórica. Com certeza a classe operária precisará jogar na lata de lixo da história muitos preconceitos, falsas ciências e misticismos religiosos produzidos na sociedade de classes. Mas para isso a classe operária precisará estar disposta a se apoderar e aprimorar tudo o que a humanidade produziu de mais avançado até hoje. Da difusão massiva e da discussão democrática em torno destes conhecimentos os homens após a revolução saberão o que aproveitar e o que não.

Consideramos que existe objetividade em boa parte dos conhecimentos produzidos pela humanidade, ainda que concordemos que estes conhecimentos na maioria das vezes são utilizados contra a classe operária, entendemos que a revolução deverá se apropriar deles.

Por um lado, sabemos que a técnica e a tecnologia, dentro do capitalismo, não são progressistas. Ela é utilizada para o aumento da mais valia relativa e para o disciplinamento rítmico, físico e moral da classe operária. Não temos ilusões no desenvolvimento técnico-científico dentro do capitalismo. Porém, sabemos que conhecimento e tecnologia são experiências humanas com o mundo externo. Ou seja, técnica e conhecimento correspondem a uma relação entre capacidade produtiva humana e propriedades objetivas do mundo. Neste sentido compreendemos que existe valor de uso na tecnologia e no conhecimento, e defendemos que este valor de uso seja apossado pela classe operária para poder desenvolver a cultura e a técnica humana, e não fazer, como a burguesia, que desenvolve a exploração do homem pelo homem. Outra política na qual o marxismo faz questão de se diferenciar é a de que devemos nos voltar apenas para os métodos de pedagogia alternativa e virar as costas para a educação formal apenas criando exemplos de pedagogias libertadoras. Tal política combina-se muito com a estratégia autonomista que, em última instância propõem métodos de vivência alternativos por dentro do capitalismo, lidando com a revolução social como algo distante e abstrato.

Encontramos nestas teses uma compreensão filosófica idealista, parecida com a que criticamos anteriormente nos socialistas utópicos, onde se acredita que é possível transformar a consciência sem revolucionar as condições sociais. Nós concordamos com Leon Trotsky quando ele discutia a educação de uma sociedade comunista na Rússia revolucionária:

 

A perspectiva utópica e humanitário-psicológica é a de que o novo homem deve primeiro ser formado e de que depois, então, ele criará as novas condições [de vida]. Não podemos acreditar nisso. Nós sabemos que o homem é produto das condições sociais. Mas sabemos também que, entre os seres humanos e as condições objetivas, existe uma complicada e ativa interação mútua. O próprio homem é um instrumento deste desenvolvimento histórico, e não é o menos importante

 

Exatamente por isso não podemos abandonar a escola, que já conta com a inserção de grandes massas de trabalhadores. Precisamos trabalhar no seu interior para tira-las das mãos da burguesia e transformá-la em um “instrumento contra este predomínio de classe”.

Qual postura a esquerda deve ter em relação ao sistema educacional?

Primeiramente, o combate cotidiano contra a ideia da escola neutra. Politizar o ambiente escolar é um passo para transformá-lo em uma escola familiarizada para os jovens e filhos da classe trabalhadora. A escola sobre o pretexto de ser neutra não pode deixar de discutir questões fundamentais para a população trabalhadora: como a precarização do trabalho, a violência policial contra os negros, os desalojamentos, a imigração, o sistema penitenciário seletivo, entre outros. É necessário que estes temas sensíveis da população sejam discutidos na escola, combinado ao melhor funcionamento do ensino das matérias curriculares, elevando o conhecimento técnico, artístico, teórico e histórico dos jovens para que estes utilizem a escola da forma que mais desejam: transformar a própria vida! É necessário transformar a escola em instrumentos de hegemonia operária e popular, de aliança entre professores, estudantes, trabalhadores e a comunidade contra o Estado capitalista.

 

A escola sobre o pretexto de ser neutra não pode deixar de discutir questões fundamentais para a população trabalhadora: como a precarização do trabalho, a violência policial contra os negros, os desalojamentos, a imigração, o sistema penitenciário seletivo, entre outros

 

Procuramos demonstrar neste texto como a realidade intrincada entre educação e mundo do trabalho coloca uma contradição importante para as estratégias e programas de quem pretende transformar este modo de produção. Por um lado, a educação expressa um avanço específico das forças produtivas e o sistema escolar é uma criação do capitalismo que faz parte dos seus avanços frente aos privilégios estamentais da sociedade feudal. Os revolucionários não pretendem fazer voltar a roda da história, portanto, de forma alguma podem se desfazer da defesa de progressos parciais que a escola e a educação apresentam. Neste sentido, nós defendemos todas as conquistas democráticas presentes na escola e ainda denunciamos que a burguesia e o Estado não pretendem manter essas conquistas eternamente. Por outro lado, a educação em uma sociedade de classes não pode nunca ser igualitária. O capitalismo se utiliza da escola como formadora de força de trabalho submetida à lógica do capital e tenta fazer dela uma disciplinadora da população.

Para responder a esta contradição compreendemos que o marxismo sempre precisou articular as discussões e programas sobre a educação a um programa vinculado a toda a classe operária e a um projeto socialista de sociedade. Ou seja, os comunistas defendem a elevação cultural em grande escala das grandes massas da população sem depositar confianças no Estado capitalista, na forma como a burguesia se apropria da educação e, muito menos no discurso de que está na difusão das instituições educacionais na sociedade o segredo contra a desigualdade social. Ao mesmo tempo, consideramos que para arrancar as instituições educacionais das mãos burguesas e colocá-las a serviço dos trabalhadores e do socialismo não podemos deixar de utilizar o que já foi produzido de progressivo pela humanidade.

Neste sentido, não acreditamos, também em nenhum utopismo idealista e ceticista que conclame que a classe operária não precisará utilizar nenhum dos conhecimentos produzidos até agora porque eles são “em si” burgueses. Continuamos com a proposta apresentada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: “Os comunistas não inventaram a intromissão da sociedade na educação, apenas mudam seu caráter e arrancam a educação à influência da classe dominante”.

 

 

 

 

 

 

 

Martín Caparrós: entendendo a fome

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Por Guilherme Freitas, via Globo.com

Em uma aldeia no Níger, no oeste da África, o argentino Martín Caparrós conheceu Aisha, uma mulher de trinta e poucos anos que se alimentava com uma bola de farinha de milho “todos os dias que posso”. Jornalista experiente em dramas sociais, Caparrós perguntou a ela o que pediria a um mago se tivesse direito a um desejo. “Uma vaca”, respondeu Aisha, e quando Caparrós insistiu que poderia escolher qualquer coisa, ela disse: “Duas vacas. Com duas, sim, eu nunca mais teria fome”.

A história de Aisha é o ponto de partida do livro “A fome” (Bertrand Brasil), ambiciosa mescla de reportagem, ensaio e manifesto que Caparrós construiu ao longo de seis anos, em viagens por países da África (Níger, Sudão do Sul, Madagascar), da Ásia (Índia, Bangladesh) e da América (Argentina, EUA). Em cada lugar, encontrou diversas definições de “fome”. Por trás de todas, porém, uma mesma lógica: um planeta que produz alimento suficiente para toda a população, mas ainda assim deixa quase 1 bilhão de pessoas desnutridas, porque “alguns de nós concentramos recursos de tal modo que muitos ficam sem nada”, diz Caparrós.

imagemO senhor diz que decidiu fazer um livro sobre a fome “porque, se não fizesse, não me suportaria”. Como esse tema surgiu em sua vida?

Escrevo reportagens sobre temas sociais e políticos há muitos anos, em muitas partes do mundo, e sempre notei que, por trás de cada um dos problemas que analisava, havia um que se repetia como pano de fundo, quase invisível: o fato de que muitas pessoas não tinham comida suficiente. Olhando melhor, me parecia mais e mais vergonhoso: o fato de um mundo que produz comida suficiente para 12 bilhões de pessoas deixar quase 1 bilhão delas sem alimentos é uma grande canalhice. Por isso, decidi trazer o pano de fundo para o primeiro plano e escrever um livro sobre a fome. Mas era difícil, porque “a fome no mundo” é um clichê sobre o qual todos sabemos o que queremos saber — e que nunca é muito. Para não cair no lugar-comum, entendi que não existe “a fome”, e sim pessoas — centenas de milhões de pessoas — que passam fome, e eu queria escutar algumas delas.

Como o contato com essas pessoas mudou sua compreensão do drama da fome?

Não sei se mudou, eu diria que aprofundou, trouxe novos matizes. Seria uma bobagem pensar que todas as pessoas que passam fome pensam e sofrem da mesma maneira. Quis deixar de lado a facilidade de converter as pessoas em números, e encará-las como são. Muitas histórias me impressionaram: uma mulher em Daca, a capital de Bangladesh, me contou que, quando não tinha comida suficiente para os filhos, colocava uma panela com água no fogão, enchia de pedras ou galhos, e dizia para as crianças dormirem um pouco, que ela as acordaria quando o jantar estivesse pronto… Assim os garotos dormiam tranquilos. Não quis perguntar como ela fazia para o truque funcionar depois de duas, três, dez vezes. Acho que, ao menos nessa ocasião, preferi não saber.

“A fome tem muitas causas, mas a falta de comida não é uma delas”, o senhor escreve. E afirma que os casos mais graves de fome hoje “são causados pelas mãos de algum homem” ou por “uma decisão do poder”. Se o planeta produz alimento suficiente para todos, por que a fome persiste em tantos lugares?

getresourceÉ importante não confundir fome com hambruna (termo espanhol que significa uma crise humanitária de fome em larga escala). Hambruna é o estado de emergência em que algum acidente — guerras, tragédias, secas — faz com que muita gente não tenha acesso à comida. Isso, por sorte, já não é tão frequente. Por sua vez, a fome é a privação sistemática que sofrem 800 milhões de pessoas em todo o mundo que, dia após dia, não comem o suficiente. As razões são múltiplas, mas, sintetizando muito: porque alguns de nós concentramos os recursos do planeta de tal modo que muitos ficam sem nada. O planeta produz o suficiente para todos, só que o sistema econômico e comercial global está armado para prover os mais ricos — e deixar de lado os mais pobres.

Como avalia a ajuda humanitária aos países que enfrentam crises de fome?

Nas emergências, a ajuda humanitária é útil e eficiente. O problema é manter essa política assistencial nos processos de longo prazo: prover infraestrutura necessária — terras, irrigação, máquinas, sementes, depósitos, estradas — para que todos possam comer sem necessidade de receber bolsas da Europa ou dos EUA, sem depender das decisões de outros.

O livro narra o aumento de preços dos alimentos a partir da crise de 2008 e os conflitos por comida nos últimos anos em países como Egito, Burkina Faso e EUA. Que novos conflitos podem ocorrer por causa de alimentos?

Essa crise foi uma amostra do que pode acontecer quando os preços dos alimentos sobem bruscamente: a Primavera Árabe, conflitos violentos ou não violentos em cerca de 50 países. Diz-se que podem acontecer guerras por água ou comida, sem pensar que essa guerra existe desde sempre e está aqui o tempo todo. O que acontece agora é que um dos lados da guerra — os países ricos, os habitantes ricos dos países pobres — está vencendo com tanta vantagem que não precisa de operações militares. Para centenas de milhões de pessoas, isso que chamamos de paz é a aceitação da derrota. E elas pagam por essa derrota um preço muito alto: a desnutrição.


 

O escritor argentino esteve na III Bienal da Leitura e do Livro de Brasília, onde lançou seu livro “A Fome”. Acompanhe a entrevista, publicada no Youtube em 02/01/2017, para o programa Ponto de Vista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fórum: “Da segurança alimentar à segurança dos alimentos”

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O Fórum Pensamento Estratégico (PENSES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), publicou na sua página do YouTube todos os vídeos com as palestras e mesas de debate do Fórum: “Da segurança alimentar à segurança dos alimentos: discutindo direitos, políticas e desafios“, ocorrido em Campinas no dia 19 de outubro de 2016. O evento teve como objetivo “traçar um paralelo entre a segurança alimentar e a segurança dos alimentos, no sentido de diferenciá-las e discutir as políticas e os desafios relacionados aos dois temas“.

 

 

 

 

Helena Nader: decisões do Congresso impactarão negativamente o futuro do País

O Senado aprovou na noite desta terça feira a PEC 55 em primeira instância. Na mesma noite, a Câmara desfigurou as 10 medidas do pacote anticorrupção

“Apesar de todos os esforços da comunidade acadêmica, científica, tecnológica e de inovação, o Congresso virou as costas para o desenvolvimento do País”, declarou a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso Brasileiro (SBPC), Helena Nader, na manhã desta quarta-feira, 30 de novembro. Com 61 votos favoráveis, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, que limita os gastos públicos federais à taxa de inflação pelos próximos 20 anos, foi aprovada em primeiro turno no Senado Federal na noite desta terça-feira, 29 de novembro. Apenas 14 senadores votaram contra. Na mesma noite, a Câmara aprovou o projeto que cria as 10 medidas anticorrupção, mas excluiu pontos-chave do texto, mantendo apenas duas medidas com a versão original. A SBPC considera gravíssima tais decisões.

“As últimas decisões do Congresso Nacional impactarão negativamente, por um longo tempo, o futuro do País, comprometendo educação e CT&I”, declara a presidente da SBPC.

Nader ressaltou o empenho de toda a comunidade nos últimos meses para evitar a aprovação da PEC 55, desde documentos demonstrando os retrocessos para a economia e desenvolvimento social do País, até corpo-a-corpo com os parlamentares, na Câmara e no Senado. Segundo ela, os parlamentares tomaram uma decisão sem levar em conta a opinião pública. “Primeiro foi a Câmara. Agora o Senado, em primeira instância, que virou as costas para o povo brasileiro. Uma mudança desse porte na Constituição teria que ter uma constituinte, porque isso altera para sempre o futuro do País”, afirma.

Segundo a presidente da SBPC, o congelamento das despesas pelos próximos 20 anos vai na contramão do que todos os países que hoje estão entre os mais desenvolvidos do mundo colocaram em prática nos momentos de crise. “A Coreia, em 1999, no meio de uma crise econômica semelhante à brasileira, fez um estudo com várias alternativas e viu que a única solução de longo prazo para sair da crise era investindo em CT&I, além da educação. Hoje é um dos países cuja economia mais cresce no mundo”, destaca.

Esse é o momento de o Brasil copiar os modelos de países como Coreia, China, Estados Unidos e Europa, que para sair da crise, investiram mais nessas áreas. “Educação, ciência, tecnologia e inovação é investimento, não é gasto”, afirma.

Nader disse ainda que a mudança nas dez medidas do pacote anticorrupção também é chocante: “O Congresso virou as costas duas vezes essa noite. Primeiro com a PEC 55 e, depois, com o pacote anticorrupção”“A SBPC há 69 anos luta ao lado do povo brasileiro para o desenvolvimento do Brasil. A gente quer que o País dê certo. Estamos chocados”, disse Nader.

A votação em segundo turno da PEC do Teto de Gastos está programada para 13 de dezembro.


Por Daniela Klebis – Publicado originalmente em Jornal da Ciência, em 30 de novembro de 2016.

 

 

A Favelada

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Por Luís Fernando Praga

Num desses contrastes brasileiros, ela morava na favela ao lado. A mãe era diarista naquele bairro rico. O pai, ela jamais conheceu.

Quando era o dia das bruxas, sempre aparecia pra pedir doces. Desde os 6 aninhos, roupas péssimas e pés descalços que pareciam não sentir o chão quente, ela não ligava para humilhação que sofria das crianças limpas e bem educadas dali. Não se incomodava de ficar no fim da fila, de ter portas fechadas na cara, de ver expressões de nojo e ódio de alguns moradores e nem de ficar só com as sobras. Agradecia com um sorriso inibido e baixava os olhos.

Voltava pra casa à noite, sacolinha meio cheia, que para ela parecia um tesouro. Comia doces como nunca e levava um bom tanto para repartir com a mãe, que sempre chegava cansada.

Para a inocência de Cristina, o dia das bruxas representava uma das poucas lembranças boas da infância.

A mãe era jovem, 23 anos e trabalhava desde os 15 em casas de família no bairro nobre que avizinhava a favela. Não teve tempo nem vontade de concluir os estudos. Um dia voltou pra casa chorando. Havia sido estuprada no emprego. A mãe da mãe, muito religiosa, a colocou pra fora de casa. Ela se virou como pôde, arranjou um barraco onde pariu Cristina sozinha.

Iuri morava com os pais numa mansão suntuosa e não via com bons olhos a favelada que invadia as ruas de seu bairro para “roubar” os doces que, por mérito, deveriam ser dele e de seus amigos.

A mãe de Iuri recomendava cuidado e distância da favelada, que podia transmitir doenças, roubar, ou andar junto de algum adulto que o sequestrasse ou apresentasse drogas.

Cristina também evitava Iuri por medo.

Passada aquela data festiva, se viam novamente apenas no ano seguinte.

Naqueles intervalos de 365 dias, as duas crianças levavam suas vidas de formas diferentes.

Iuri sofria com a presença de gente como Cris, que se amontoava nas favelas da cidade. Gente violenta que, segundo seus pais, matava, roubava e sequestrava pessoas de bem o tempo todo.

Cris sofria com a falta de água, de saneamento básico e com as balas perdidas.

Iuri sofria por ter passado apenas 10 dias na Disney aquele ano, chorava, batia os pés e exigia algum bônus dos pais.

Cris sofria com o transporte público precário. Muitas vezes o ônibus não passava e ela perdia aula. Ela adorava sua escola simplesinha. Lá aprendera a ler precocemente. Era tímida, mas questionadora. Quando não podia ir, ficava triste e frustrada. Voltava para casa e aguardava algum carinho da mãe, que sempre chegava cansada, triste, frustrada e logo dormia, sem carinhos.

Iuri tinha um motorista particular e frequentava a melhor escola da cidade. Gostava de ser o centro das atenções, como seus pais o criaram para ser. Fazia bullying com meninas, com negros, com gordos e com gays e ficava muito indignado e infeliz quando algum professor chamava sua atenção.

Iuri sofria a vida toda, assim como seus pais e seus avós, com a ameaça comunista, que planejava dividir todas as suas posses com pessoas como Cris. Isso fez Iuri crescer com medo e ódio, assistindo televisão e pedindo a Deus que livrasse o seu amado Brasil daquele tipo de gente.

Cris também sofria algumas privações, passava frio, fome e adoecia facilmente. Nunca encontrara ninguém com a disposição de ajuda-la, muito menos de repartir as coisas dos ricos com ela. Não via ninguém na favela melhorar de vida graças à ajuda de quem quer que fosse. Nunca ela, sua mãe ou sua avó receberam qualquer tipo de benefício trazido por algum comunista e jamais vira um comunista na vida.

Iuri sofria e culpava o governo quando ocasionalmente a energia de seu bairro acabava. Era difícil receber os amigos sem videogame e ar condicionado. “País de merda!”, bradava Iuri. Fazia birra para os pais e exigia outro bônus. Os pais faziam a vontade de Iuri, não sem antes dizerem “país de merda!”.

A vida também não era um mar de rosas para Cris, mas ela nunca teve vontade de chamar o Brasil de “país de merda”. Para ela, mais do que refletir a condição do país, essa frase refletia o estado emocional de alguém descontrolado pelo estresse.

Aos 13 anos Cristina ainda foi ao dia das bruxas coletar doces naquele bairro de ricos onde a luz só acabava de vez em quando. Já ia voltar pra casa quando foi surpreendida por um grupo de meninos que roubou seus doces, cuspiu em seu rosto e a espancou. No final, Iuri disse para que ela nunca mais voltasse, a não ser para limpar as privadas.

Cristina chegou em casa profundamente ferida. A mãe perguntou dos doces e Cris contou, chorando, que não havia conseguido nenhum aquele dia. A mãe sorriu com olhos mareados pela tristeza da filha, disse que tudo bem e logo dormiu.

Naquela noite Cris sentiu que o mundo a odiava. Ela era preta num país onde a mídia exaltava que o bonito era ser branco. Ela era pobre num mundo que matava e prendia os pobres e onde ter sucesso na vida era ser rico. Ela era mulher num mundo machista de valores deturpados.

Deitou-se no colchonete precário e chorou muito. Tapou os ouvidos pra não ouvir seu choro, nem a briga e nem o amor dos vizinhos, nem cachorros latindo, nem a roda de samba e nem o tiroteio. Continuou chorando pelo desamor do mundo. Chorou mais, porque apesar disso tudo, ela não sabia o motivo, mas ainda desejava viver e isso tornava tudo mais difícil.

O sono não veio, o choro não passou e, naquela madrugada mágica, naquele triste barraco, ficaram apenas Cris e ela mesma.

A mão que tapava a orelha sem garantir o silêncio e começou a enrolar um dedo nos cabelos enrolados. Ela tentou se dar carinho. Recebeu, de si própria, seu primeiro cafuné. Ela amou acariciar seus cabelos e seu rosto e o fez com uma vontade libertadora. Acompanhou, delicadamente, com a ponta dos dedos, as lágrimas que corriam do canto do olho até o canto da boca. Ela amou se tocar, amou o fato de existir algum amor. Ela se amou profundamente e amou experimentar o prazer. Foi feliz naquele instante que tingiu pra sempre o mundo de outras cores.

A partir daquela madrugada Cristina aprendeu que podia fazer bem a si própria, por mais que Iuri e seus amigos a ofendessem e que dissessem de suas limitações. Por mais que nunca aparecesse nenhum comunista para torná-la menos pobre. Por mais que nenhum governo pudesse resolver seus problemas ou sequer soubesse de sua existência. Ela sentiu que era capaz de amar e ser feliz e sentiu a importância disso em sua vida. Desejou sofrer menos e entendeu que isso estava muito em suas mãos.

Passou a ler ainda mais, descobriu que havia gente que não cultivava ódios ou preconceitos e que ela era esse tipo de gente.

Conversou mais com a mãe, contava tudo o que aprendia na escola, na vida e dentro de si mesma. Fizeram uma horta no quintal. Criaram uma cooperativa de costureiras na favela e passaram a produzir as próprias roupas e a se vestir com dignidade. Faziam escambo das coisas que necessitavam e a mãe de Cristina deixou de ser explorada, passou a ter mais tempo com a filha para trocarem afetos e conselhos.

Cristina aprendeu que nem todo rico era cruel, mas a riqueza mal distribuída era sempre crueldade.

Aprendeu que nem todo pobre era bondoso e correto.

Aprendeu que havia muitos pobres no mundo, porque só esse tipo de gente se prestaria ao papel de manter os ricos ainda mais ricos, trabalhando por migalhas antes de uma morte precoce.

Entendeu que a miséria era o combustível da fortuna.

Aprendeu que havia pobres armados que assaltavam, matavam e faziam arrastões. Havia ricos que desviavam dinheiro público, queimavam mendigos que dormiam, estupravam e matavam travestis, mulheres e homossexuais.

Aprendeu que os ricos, e não os pobres, fomentavam a indústria armamentista e as guerras. Que as guerras matavam muito mais pobres do que ricos, e que das guerras vinham as armas que perpetuavam a violência no mundo.

Aprendeu que o ódio era uma droga legal e de efeito devastador sobre o cérebro humano, aceita e consumida livremente pela sociedade, e que bastava respirá-lo um pouco para o ódio viciar. Viu que a mídia fazia apologia constante a essa droga, polarizando opiniões, acirrando rivalidades, marginalizando diferenças, distorcendo a verdade e manipulando informações. Era um povo desunido que mantinha o sistema vigente.

Ela não quis aquilo para seu cérebro nem para seu coração. Preferiu explorar os limites daquele amor que ela sabia ser poderoso e possível.

Aprendeu que amor e ódio não escolhiam classes sociais.

Aprendeu sobre liberdade, sustentabilidade e solidariedade. Sobre as diferenças e a tolerância.

Estudou a justiça, a meritocracia e a hipocrisia.

Aprendeu sobre a luta das mulheres, e que a origem do dia das bruxas vinha de uma festa pagã, criada para louvar a uma Deusa Mãe, a Terra, em gratidão por uma colheita farta.

Aprendeu que houve um tempo em que bruxas eram mulheres livres e pensantes, que ameaçaram os desmandos de uma igreja e de uma sociedade machistas e gananciosas. Que elas foram queimadas em fogueiras de forma covarde e estúpida, por gente ignorante e cheia de medos, a fim de criar gerações de mulheres temerosas e submissas.

Aprendeu que gente com medo vivia uma vida limitada, atrelada a seu medo. Que o medo se convertia em submissão ou em agressividade. Que, percebendo isso, algumas pessoas e instituições se especializaram em semear e explorar o medo.

Lembrou-se de Iuri e seus amigos.

Envergonhou-se de mendigar doces por tanto tempo, mas depois riu da criança que fora.

Passados alguns anos, voltaram a se encontrar numa sala de aula de uma escola pública. Iuri não a reconheceu, com toda aquela nova auto estima e segurança, mas encantou-se por ela quando a viu chegando para o Exame Nacional do Ensino Médio.

Embora tivessem a mesma idade, morassem perto um do outro, tivessem cruzado seus caminhos várias vezes e além até de não saberem, mas serem filhos do mesmo pai, dali pra frente a vida os separou definitivamente.

Cristina continuou acreditando no amor, no conhecimento e nas mágicas surpresas da vida. Passou em uma boa faculdade e se torna uma mulher mais livre e plena a cada dia.

Iuri zerou na redação, administra as empresas do pai e continua viciado em ódio, cultivando a ignorância e sofrendo de medo.


Texto originalmente publicado em novembro de 2015, em Carta Campinas.