Regimes alimentares e questões agrárias

Reproduzido do site da Editora UNESP, publicado em 27 de fevereiro de 2017.


Pesquisador da Universidade de Cornell analisa as relações agroalimentares em escala global a partir do conceito de regime alimentar, que articula produção e consumo de alimentos com acúmulo de capital

capaEm 2009, existiam cerca de um bilhão de famintos ou subnutridos no mundo. Cerca de três quartos destas pessoas viviam na zona rural. Trata-se de uma crise alimentar que, desde o começo do milênio, gira em torno da política dominante das relações alimentares, de uma cadeia de interesses que, por meio da mercantilização, transforma as culturas agrícolas ao redor do mundo. Neste cenário, em Regimes alimentares e questões agrárias, que a Editora lança em coedição com a Editora da UFRGS, Philip McMichael articula estas e outras questões em uma interpretação das relações entre os problemas alimentares, as estruturas de produção e o consumo de alimentos na ordem capitalista global.

Para isso, McMichael utiliza o conceito de regime alimentar, instrumento analítico usado para demonstrar como a produção e o consumo de alimentos são direcionados para o acúmulo de capital. Faz isso comparando três períodos distintos: o imperial, dominado pela Inglaterra entre 1870 e 1930; o intensivo, centrado nos Estados Unidos entre 1950 e 1970; e o corporativo, comandado pelas corporações entre 1980 e 2000.

Trabalhando com o significado político das relações agroalimentares em escala global, descortina com perspectivas alternativas, em especial as baseadas na soberania alimentar, para propor soluções aos problemas gerados por estes regimes, principalmente a questão da fome como um fenômeno predominantemente rural. Como coloca o pesquisador Eduardo Paulon Girardi no prefácio dessa edição brasileira, Regimes alimentares e questões agrárias “permite que o leitor compreenda que o que chega ao seu prato (o que, quanto e com qual qualidade) não é exatamente fruto de sua própria escolha e muito menos da escolha dos agricultores, mas sim é determinado por projetos muito mais amplos que submetem países, povos, agricultores e consumidores às necessidades do processo incansável de acumulação do capital”.

Regimes alimentares e questões agrárias integra a série Estudos Camponeses e Mudança Agrária, resultado de uma parceria entre a Editora Unesp, o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais, a Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial, o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (TerritoriAL), a Coleção Vozes do Campo, a Editora da UFRGS e a Série Estudos Rurais, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural.

Sobre o autor – Philip McMichael é professor do Departamento de Sociologia do Desenvolvimento da Cornell University e autor de Settlers and the Agrarian Question: Foundations of Capitalism in Colonial Australia (1984) e Development and Social Change: A Global Perspective (2012, 5.ed.).

Título: Regimes alimentares e questões agrárias
Autor:  Philip McMichael
Tradução: Sonia Midori
Revisão Técnica: Bernardo Mançano Fernandes e Sergio Scheider
Número de páginas: 256
Formato: 14 x 21 cm
Preço: R$ 48,00
ISBN: 978-85-393-0597-1

IV Encontro Sobre Neurociências na Educação

f6cfa4_17debd52837f44e8873e2a99ba6d3c9amv2Estarão abertas as inscrições, até o dia 24 de abril de 2017, para o IV Encontro sobre Neurociências na Educação (NeuroEdu 2017), que acontecerá na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas no dia 05 de maio de 2017. De acordo com o site do evento, o encontro “apresentará leituras teóricas e práticas resultantes de trabalhos educativos e científicos sobre neurociências aplicadas à educação“.

As normas para elaboração dos trabalhos estão disponíveis no site do encontro. A programação foi dividida em dois eixos temáticos “Neurociências” e “Educação”:

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Leonor Guerra: “o educador é quase um neurocirurgião”

Professora da UFMG e coordenadora do projeto NeuroEduca fala sobre a importância das emoções na aprendizagem

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A aquisição de novas habilidades, conhecimentos e competências é resultado de processos que acontecem no cérebro. A memória, atenção, percepção e até mesmo emoção são funções que estão em jogo na hora de aprender um novo conteúdo. Se o cérebro é o órgão responsável pela aprendizagem, compreender melhor o seu funcionamento pode ser útil para o dia a dia do professor. “O educador é quase um neurocirurgião que, sem abrir o cérebro, consegue mudar conexões por meio dos órgãos do sentido”, compara a professora Leonor Guerra, do departamento de morfologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

A base da aprendizagem está na reorganização dos neurônios. A professora da UFMG afirma que nosso cérebro se desenvolveu ao longo da evolução para garantir a sobrevivência, e não necessariamente para ter sucesso na escola. “Eu só vou aprender novas coisas se aquilo fizer diferença para minha possibilidade de adaptação”, explica.

Quando um aluno compreende que o seu mecanismo de sobrevivência na escola é conseguir nota, a especialista afirma que ele começa a criar uma série de estratégias para atingir o seu objetivo, ainda que isso não resulte em aprendizagem, como a famosa tática de estudar às vésperas da prova. “Se a avaliação permite que ele seja bem-sucedido com essa estratégia, ele vai permanecer nela.”

Para uma criança ou adolescente adquirir novas competências, Leonor defende que o conteúdo deve ser significativo e relevante. Defende ainda que uma das maiores tarefas do educador é encantar o aluno com o conteúdo. ‘‘A emoção é o carro-chefe da aprendizagem. O professor tem que saber que a emoção que ele desencadeia no aluno, positiva ou negativa, vai ter uma efeito”, aponta a professora da UFMG, que também é coordenadora do projeto NeuroEduca, iniciativa de extensão da universidade voltada para divulgação de informações para orientar profissionais da área de educação sobre conceitos básicos de neurociência.

Durante as formações com educadores, que acontecem em de cursos de atualização ou palestras de sensibilização, a médica e especialista em neuropsicologia conta que muitos professores ainda apresentam dificuldades ao estabelecer relações entre pesquisas da neurociência e a prática de sala de aula. Segundo ela, isso pode ser um resultado da falta de contato com esse conteúdo no período da formação inicial.

De acordo com Leonor, a interação com essa área de conhecimento confere maior autonomia e criatividade para o professor. “Ele fica menos atrelado à receitas e consegue flexibilizar melhor a sua estratégia pedagógica, atendendo especificidades do aluno em sala de aula”, aponta.

Embora seja útil conhecer como o sistema nervoso processa informações e estímulos, a professora ainda adverte: “não quer dizer que ele [o educador] vai conseguir resolver todos os problemas da aprendizagem, mas ele vai entender porque uma aula tem um resultado melhor do que outra, ou porque alguns alunos são melhor sucedidos do que outros.”


Matéria originalmente publicada no site Porvir, em setembro de 2015.

 

Neurociência e aprendizagem

De forma didática, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel fala sobre a contribuição das ciências do cérebro na compreensão do processo de aprendizagem. De acordo com Roberto Lent, professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, a aprendizagem pode ser definida como “o processo de aquisição de novas informações que vão ser retidas na memória. Através dele nos tornamos capazes de orientar o comportamento e o pensamento. Memória, diferentemente, é o processo de arquivamento seletivo dessas informações, pelo qual podemos evocá-las sempre que desejarmos, consciente ou inconscientemente. De certo modo, a memória pode ser vista como o conjunto de processos neurobiológicos e neuropsicológicos que permitem a aprendizagem” (In: Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais da neurociência. São Paulo: Atheneu, 2001, p.594).

 

II Congresso Internacional e VII Congresso Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem

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Organizado pela Associação Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem (ANDEA), e em parceria com a Universidade Presbiteriana Mackenzie e a CEFAC Consultoria em Fonoaudiologia Clínica – Saúde e Educação, o II Congresso Internacional e VII Congresso Nacional de Dificuldades de Ensino e Aprendizagem, que acontecerá em São Paulo entre os dias 31 de maio e 03 de junho de 2017, terá como objetivo “promover a troca de experiências sobre as dificuldades de ensino e aprendizagem, contribuir estrategicamente para o desenvolvimento de alunos, pais, profissionais da saúde e educação e da diversidade na sociedade contemporânea, de modo a proporcionar reflexões, debates, capacitação e estudos científicos, colaborando assim para um trabalho multidisciplinar“.

Dentre os temas discutidos no evento, estão incluídos a Neurociência, Família, Escola, Sociedade, Dificuldades de Ensino e Aprendizagem, Inclusão Escolar, Inclusão Social, Aprendizagem e Ensinagem, ministrados em palestras e conferências por profissionais nacionais e internacionais.

As inscrições estão abertas. As informações sobre inscrições, programação, cursos oferecidos ao longo do congresso e o regulamento para a submissão de trabalhos, acesse o site do evento.

Sistema educacional e transformação social

Este texto é parte do artigo “Contribuições de uma perspectiva revolucionária para o debate sobre educação” presente na Revista “Educação e luta de classes”. Publicado originalmente no site Esquerda Diário, em 09/08/2016.


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Por João de Regina e Aline Guerra

A massificação da educação no capitalismo longe de significar sua universalização, significou a criação de sistemas educacionais altamente estratificados. As escolas públicas precarizadas garantem o ensino da grande massa da população e alguns centros de formação distantes aos trabalhadores garantem ensinos que são como base para profissões liberais. Conforme os jovens vão crescendo, provas e concursos os selecionarão para determinadas profissões. Alguns estudantes de escolas privadas, e os melhores de algumas escolas públicas, garantem seu acesso a “boas universidades” – algumas públicas, outras privadas – filhos dos grandes ricos possuem seu acesso garantido em universidades no exterior ou centros de excelência privados e públicos no Brasil. Essas universidades garantem a qualificação profissional de cargos que são vinculados aos conhecimentos complexos, aos altos cargos de gerência, administração, da burocracia estatal e empresarial, ou às “profissões científicas”. Uma parcela bastante pequena da população, após passar seus 20 anos de “carreira educacional”, poderá ocupar estes lugares e se sentirem próximos dos meios burgueses, devido seus altos salários.

Em compensação, os trabalhadores desde cedo precisam combinar o estudo às mais diversas estratégias de trabalho; conviver no ambiente escolar com as penúrias de sua vida cotidiana: violência, fome, desemprego dos pais, trabalho doméstico, doenças, precarização geral da vida; como se não bastasse estar distante das consideradas “escolas de excelência”, a forma em que lhes é exigido o sucesso escolar é incompatível com sua vida; estudar alguns anos em cursinhos para entrar em uma universidade de excelência lhes é um empecilho frente às necessidades de trabalho que já lhes são impostas na adolescência, e muitas vezes antes. Como o mercado lhes exige determinados níveis de qualificação profissional, alguns destes jovens batalham para combinar o cotidiano escolar a cursos profissionalizantes e técnicos, buscando os cargos com salários um pouco melhores no mercado de trabalho. Entre os cursos técnicos os jovens se deparam novamente com os cursos de excelência com processos de seleção e os considerados de não tão boa qualidade. Assim, os sistemas educativos nos países capitalistas, utilizando os mais variáveis mecanismos, são verdadeiras máquinas de divisão social. O critério ideológico desta divisão é o mérito.

 

“… os sistemas educativos nos países capitalistas, utilizando os mais variáveis mecanismos, são verdadeiras máquinas de divisão social”

 

Uma das formas de justificação deste sistema de estratificação é a valorização abstrata do conhecimento intelectual combinada com a ideologia da neutralidade escolar. Por um lado, a escola ensina que este conhecimento é a base de toda profissão e que o sucesso na vida dependerá da aptidão dos jovens nestes ensinos. Logo, nada mais natural que aqueles não bem sucedidos ocupem os cargos que menos necessitam qualificação que, consequentemente são consideradas as profissões de menor prestígio social. Ora, esta ideologia joga para as costas do próprio jovem o fracasso escolar.

Combinado a isso, a escola se apresenta como neutra, desvinculada da política aparenta não tomar lado nas principais questões sociais e políticas da vida. Esta é a principal causa do porque a escola é uma instituição estranha e opressora à grande maioria dos jovens.

Sobre este ponto, Nadežda Krupskaja escreve: “A escola, a pretexto de ser neutra, não aborda as questões que estão na base da existência das crianças, acima de tudo das crianças proletárias: os salários, as greves, o desemprego, as guerras coloniais. Tal escola transforma-se “numa escola de silêncio para a criança, uma escola de morte” (citado em [Georges] Snyders).

Educação e a luta contra o Estado burguês

Existem, pela direita e pela esquerda, ideologias, teses e teorias que apostam em novos modelos de educação capazes de formar novas consciências como pressuposto para o surgimento de uma nova sociedade. O marxismo combate tais visões como expressões idealistas, não porque considera a educação simples determinação da economia, mas concebe de maneira dialética que não existe socialismo e nenhum tipo de emancipação humana por fora do fim do capitalismo e do estabelecimento de uma sociedade sem classes. Marx, no Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores, estabeleceu tal relação da seguinte maneira:

 

“Por um lado é necessário modificar as condições sociais para criar um novo sistema de ensino; por outro falta um sistema de ensino novo para poder modificar as condições sociais. Consequentemente é necessário partir da situação atual”

 

A primeira luta de Marx e Engels, portanto, foi contra as formas de socialismo utópico e diversas leituras que buscavam respostas no campo da educação, da ciência ou mesmo formações sociais, deslocadas do movimento real histórico – nesse sentido não se embatiam contra o Estado burguês. Muitos dos socialistas utópicos consideravam que o desenvolvimento da ciência, da educação e de modelos de organização democráticos dariam o exemplo que mostrariam na prática “a verdade” de que o socialismo era mais viável. Desconsideravam que o desenvolvimento histórico influenciava os interesses sociais que tornavam as principais classes no capitalismo antagônicas. Não perceberam os socialistas utópicos que “a verdade” das armas da crítica do socialismo só seria provada pela crítica das armas. Saint-Simont chegou a conclamar “a tomada do poder pela ciência” e outros teóricos, como o alemão [Werner] Sombart, bem menos críticos ao capitalismo que os socialistas utópicos, contra os revolucionários afirmaram: “Como queriam eles arrancar pela luta aquilo que deveria ser provado?”

Marx e Engels combateram, ao mesmo tempo, as teorias idealistas que consideram possível transformar a consciência por fora da transformação das condições de existência, quanto às teses de um materialismo contemplativo, onde não existe espaço para ação humana transformadora. Nas teses sobre [Ludwig] Feuerbach, os fundadores do comunismo irão encontrar a síntese entre a compreensão de que “a existência determina a consciência” e de que os homens através da práxis podem transformar o mundo ao qual fazem parte.

 

“A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado .(…) A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como práxis revolucionária”

 

Mas não foi apenas com as formas utópicas em que se travou o debate teórico e político. Mesmo no interior das organizações socialistas, Marx travou importantes batalhas. Um exemplo ilustrativo se deu em sua luta contra a corrente de Lassale na Crítica do Programa de Gotha. Neste, Marx combatia um programa que expressava uma adaptação ao Estado burguês e uma concepção reformista e oportunista das lutas operárias. Marx fez questão de demonstrar como o programa levantado pelo Partido Alemão se limitava aos limites impostos pelo Estado burguês.

Um dos pontos que Marx vai criticar está exatamente na forma como o Partido Operário Alemão levantava a bandeira da universalização da Educação: “O Partido Operário Alemão exige, como base espiritual e moral do Estado: Educação popular universal e igual sob incumbência do Estado. Escolarização universal obrigatória geral. Instrução gratuita”. Marx defendeu que tal programa colocado genericamente defendia, em última instância, uma educação feita pelo Estado burguês: “Educação popular universal igual? O que se entende por essas palavras? Crê-se que na sociedade atual (e apenas ela que está em questão aqui) a educação pode ser igual para todas as classes?

O programa não evidenciava a principal questão levantada por Marx, a educação no capitalismo corresponde a este modo de produção. Logo não pode ser uma educação igual a todas as classes. Depois o programa conclama para o Estado o papel de educar a população e Marx estabelece:

 

Absolutamente condenável é uma “educação popular sob incumbência do Estado”. Uma coisa é estabelecer, por uma lei geral, os recursos das escolas públicas, a qualificação do pessoal docente, os currículos, etc, e, como ocorre nos Estados Unidos, controlar a execução dessas prescrições legais por meio de inspetores estatais, outra muito diferente é conferir ao Estado o papel de educador do povo! O governo e a Igreja devem antes ser excluídos de qualquer influência sobre a escola

 

Marx mostrava que, ao levantar a questão da universalização da educação desligada das questões concretas das condições sociais, da sociedade de classes, não evidenciavam o fundamental: que a classe operária precisa ter um projeto pedagógico distinto da burguesia. E que essa universalização precisa ser feita pelos operários e suas lutas e não poderá ser feita de forma definitiva pela burguesia e este Estado. O nível de abstração do programa em torno da educação poderia acabar por deixar o partido alemão a reboque dos projetos de expansão educacionais encampados pela própria burguesia.

A Comuna de Paris como inspiração

Se olharmos a primeira experiência de poder operário da história (a Comuna de Paris, de 1871), perceberemos que os revolucionários que participaram dela compreenderam esta questão rápido. Ainda que a Comuna não teve tempo para reestruturar o sistema de ensino ela percebeu a necessidade de tirar o sistema educacional das mãos da classe dominante e questionar seus preconceitos de classe e sua ingerência governamental:

 

A comuna ansiava por quebrar a força espiritual de repressão, o “poder paroquial”, pela desoficialização e expropriação de todas as igrejas como corporações proprietárias. Os padres foram desenvolvidos ao retiro da vida privada, para lá viver das esmolas dos fiéis, imitando seus predecessores, os apóstolos. Todas as instituições de ensino foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo purificadas de toda a interferência da Igreja e do Estado. Assim, não somente a educação se tornava acessível a todos, mas a própria ciência se libertava dos grilhões criados pelo preconceito de classe e pelo poder governamental

 

A Comuna de Paris nos deu sinais para compreender quais são os métodos com que a classe operária precisará da escola. Colocar as instituições e instrumentos escolares nas mãos dos professores e do próprio povo com seus mecanismos de democracia direta é a possibilidade de evitar a fragmentação que a burguesia impõe ao sistema educacional. Ao mesmo tempo, a Comuna mostrou a necessidade de a classe operária ser intransigente sobre a existência de apenas um sistema educacional de massas que não possibilite nenhum tipo de apropriação privada.

Além de desvincular a educação da lógica burguesa, a Comuna de Paris nos legou uma herança de combate que ainda segue vigente: a sua libertação da influência religiosa. Isto que em tese foi uma reivindicação da própria burguesia na revolução francesa adquiriu uma vida extremamente instável no capitalismo. A burguesia, para continuar seu poder, precisa se combinar também com o que existe de formas e instituições ideológicas das mais atrasadas, como é o caso das igrejas. Mesmo nos países mais avançados, o Estado e a Igreja se unem periodicamente para diminuir a importância desta conquista social que é o ensino laico. Mesmo na França, um século após a revolução francesa, o Estado quis novamente responsabilizar os padres pelo ensino da população camponesa.

 

Mesmo nos países mais avançados, o Estado e a Igreja se unem periodicamente para diminuir a importância desta conquista social que é o ensino laico

 

Nos Estados Unidos não é incomum descobrirmos a existência de discursos criacionistas e antidarwinistas nas escolas. Nos países subdesenvolvidos a ideia de um Estado e uma educação laicos é uma realidade ainda mais instável. O Estado burguês nestes países nunca chegou a ter um enfrentamento direto com a Igreja. Pelo contrário, considera-a como uma instituição social e através de incentivos fiscais garante seu fortalecimento e a propagação das suas ideias. Com esses incentivos às igrejas, atualmente com ênfase nas evangélicas, ganham espaços dentro das escolas. A presença das igrejas dentro da escola fortalece seu prestígio fora, e como ela ganha as famílias fora da escola, ela se fortalece dentro.

Por outro lado, o capitalismo também sabe mistificar a própria ideia de laicidade e transformá-la a seu favor. Comumente o Estado fortalece as religiões de origem cristã e, como estas estão mais intrincadas com o cotidiano capitalista, utilizam o discurso da laicidade para oprimir as populações imigrantes e as religiões de minorias políticas. Compreendemos que só um ensino laico garantido pela classe operária e pela expropriação econômica e política das igrejas e negócios religiosos poderemos acabar com a influência dos preconceitos religiosos. A burguesia não pode cumprir até o final nem suas primeiras e mais importantes reivindicações progressivas!

A luta de classes na escola e a luta pela apropriação dos saberes produzidos pela humanidade

As teses céticas sobre a escola e educação chegam, muitas vezes, à ideia de que não existe nada no conhecimento atual que a classe operária e a revolução precisarão se apropriar e utilizar. Consideramos tal visão idealista e a-histórica. Com certeza a classe operária precisará jogar na lata de lixo da história muitos preconceitos, falsas ciências e misticismos religiosos produzidos na sociedade de classes. Mas para isso a classe operária precisará estar disposta a se apoderar e aprimorar tudo o que a humanidade produziu de mais avançado até hoje. Da difusão massiva e da discussão democrática em torno destes conhecimentos os homens após a revolução saberão o que aproveitar e o que não.

Consideramos que existe objetividade em boa parte dos conhecimentos produzidos pela humanidade, ainda que concordemos que estes conhecimentos na maioria das vezes são utilizados contra a classe operária, entendemos que a revolução deverá se apropriar deles.

Por um lado, sabemos que a técnica e a tecnologia, dentro do capitalismo, não são progressistas. Ela é utilizada para o aumento da mais valia relativa e para o disciplinamento rítmico, físico e moral da classe operária. Não temos ilusões no desenvolvimento técnico-científico dentro do capitalismo. Porém, sabemos que conhecimento e tecnologia são experiências humanas com o mundo externo. Ou seja, técnica e conhecimento correspondem a uma relação entre capacidade produtiva humana e propriedades objetivas do mundo. Neste sentido compreendemos que existe valor de uso na tecnologia e no conhecimento, e defendemos que este valor de uso seja apossado pela classe operária para poder desenvolver a cultura e a técnica humana, e não fazer, como a burguesia, que desenvolve a exploração do homem pelo homem. Outra política na qual o marxismo faz questão de se diferenciar é a de que devemos nos voltar apenas para os métodos de pedagogia alternativa e virar as costas para a educação formal apenas criando exemplos de pedagogias libertadoras. Tal política combina-se muito com a estratégia autonomista que, em última instância propõem métodos de vivência alternativos por dentro do capitalismo, lidando com a revolução social como algo distante e abstrato.

Encontramos nestas teses uma compreensão filosófica idealista, parecida com a que criticamos anteriormente nos socialistas utópicos, onde se acredita que é possível transformar a consciência sem revolucionar as condições sociais. Nós concordamos com Leon Trotsky quando ele discutia a educação de uma sociedade comunista na Rússia revolucionária:

 

A perspectiva utópica e humanitário-psicológica é a de que o novo homem deve primeiro ser formado e de que depois, então, ele criará as novas condições [de vida]. Não podemos acreditar nisso. Nós sabemos que o homem é produto das condições sociais. Mas sabemos também que, entre os seres humanos e as condições objetivas, existe uma complicada e ativa interação mútua. O próprio homem é um instrumento deste desenvolvimento histórico, e não é o menos importante

 

Exatamente por isso não podemos abandonar a escola, que já conta com a inserção de grandes massas de trabalhadores. Precisamos trabalhar no seu interior para tira-las das mãos da burguesia e transformá-la em um “instrumento contra este predomínio de classe”.

Qual postura a esquerda deve ter em relação ao sistema educacional?

Primeiramente, o combate cotidiano contra a ideia da escola neutra. Politizar o ambiente escolar é um passo para transformá-lo em uma escola familiarizada para os jovens e filhos da classe trabalhadora. A escola sobre o pretexto de ser neutra não pode deixar de discutir questões fundamentais para a população trabalhadora: como a precarização do trabalho, a violência policial contra os negros, os desalojamentos, a imigração, o sistema penitenciário seletivo, entre outros. É necessário que estes temas sensíveis da população sejam discutidos na escola, combinado ao melhor funcionamento do ensino das matérias curriculares, elevando o conhecimento técnico, artístico, teórico e histórico dos jovens para que estes utilizem a escola da forma que mais desejam: transformar a própria vida! É necessário transformar a escola em instrumentos de hegemonia operária e popular, de aliança entre professores, estudantes, trabalhadores e a comunidade contra o Estado capitalista.

 

A escola sobre o pretexto de ser neutra não pode deixar de discutir questões fundamentais para a população trabalhadora: como a precarização do trabalho, a violência policial contra os negros, os desalojamentos, a imigração, o sistema penitenciário seletivo, entre outros

 

Procuramos demonstrar neste texto como a realidade intrincada entre educação e mundo do trabalho coloca uma contradição importante para as estratégias e programas de quem pretende transformar este modo de produção. Por um lado, a educação expressa um avanço específico das forças produtivas e o sistema escolar é uma criação do capitalismo que faz parte dos seus avanços frente aos privilégios estamentais da sociedade feudal. Os revolucionários não pretendem fazer voltar a roda da história, portanto, de forma alguma podem se desfazer da defesa de progressos parciais que a escola e a educação apresentam. Neste sentido, nós defendemos todas as conquistas democráticas presentes na escola e ainda denunciamos que a burguesia e o Estado não pretendem manter essas conquistas eternamente. Por outro lado, a educação em uma sociedade de classes não pode nunca ser igualitária. O capitalismo se utiliza da escola como formadora de força de trabalho submetida à lógica do capital e tenta fazer dela uma disciplinadora da população.

Para responder a esta contradição compreendemos que o marxismo sempre precisou articular as discussões e programas sobre a educação a um programa vinculado a toda a classe operária e a um projeto socialista de sociedade. Ou seja, os comunistas defendem a elevação cultural em grande escala das grandes massas da população sem depositar confianças no Estado capitalista, na forma como a burguesia se apropria da educação e, muito menos no discurso de que está na difusão das instituições educacionais na sociedade o segredo contra a desigualdade social. Ao mesmo tempo, consideramos que para arrancar as instituições educacionais das mãos burguesas e colocá-las a serviço dos trabalhadores e do socialismo não podemos deixar de utilizar o que já foi produzido de progressivo pela humanidade.

Neste sentido, não acreditamos, também em nenhum utopismo idealista e ceticista que conclame que a classe operária não precisará utilizar nenhum dos conhecimentos produzidos até agora porque eles são “em si” burgueses. Continuamos com a proposta apresentada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: “Os comunistas não inventaram a intromissão da sociedade na educação, apenas mudam seu caráter e arrancam a educação à influência da classe dominante”.

 

 

 

 

 

 

 

Educação alimentar e nutricional: responsabilidade de quem?

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Por Maria Cristina Faber Boog¹

Em casa recebemos dois jornais por assinatura. Me surpreendeu o fato de que, em um espaço de apenas três dias, assuntos relativos à alimentação vieram ocupar espaços significativos desses jornais. Dois deles versavam sobre a constatação através de pesquisas do fato de que bebês já tomam refrigerante. O outro trazia uma análise do trabalho de uma jornalista que se dedica a investigar a fidedignidade de informações contidas nos rótulos de alimentos e denunciar informações enganosas. Ambas são contribuições importantes, por um lado de pesquisadores, por outro de jornalistas. Cada qual em seu papel. É importante que a informação científica não fique restrita aos periódicos científicos, mas que ela venha ao público que, afinal, mantém as Universidades Públicas onde, de fato, se faz pesquisa no Brasil. Por outro, é papel do jornalista desconfiar de tudo, averiguar e informar. Se os rótulos passam uma ideia distorcida sobre os produtos, a sociedade precisa ser informada e alertada a respeito disso, os órgãos de defesa do consumidor devem ser acionados e a legislação precisa ser aprimorada. Até aqui nada novo, tudo em seu devido lugar. Evidencia-se um crescente interesse pelos assuntos relativos à alimentação, o que é bom, pois trata-se de um tema central para a saúde.

Os atos de informar, educar e orientar compartilham algumas intenções, porém são ações com objetivos específicos e diferentes entre si. Para educar é preciso orientar, mas educar é mais do que orientar. Para orientar é preciso informar, mas só informar também não basta. Pressupõe-se, muitas vezes, que a capacitação do educador possa acontecer pela leitura de guias e documentos, pelo uso de materiais didáticos, vídeos, jogos e um sem número de objetos “didaticamente” desenvolvidos para esse fim. Isso me faz lembrar de três grandes mestres que tive: Rubem Alves, Paulo Freire e João Francisco Regis de Morais. Deste último lembro sempre a frase que muito me marcou: “Educação é encontro humano”. Rubem Alves falou do “espaço invisível e denso, que se estabelece a dois. Espaço artesanal.”, no qual a palavra, o diálogo (marca da educação freireana), o olho no olho fazem toda a diferença. Educação é algo que só acontece entre pessoas, espaço artesanal.

“Educação é algo que só acontece entre pessoas, espaço artesanal.”

A reflexão que desejo compartilhar aqui é sobre a maneira como a Educação Alimentar e Nutricional vem sendo vista e desenvolvida em certos contextos. Na lei que rege a atuação do nutricionista, a Educação Nutricional é considerada uma atividade privativa do nutricionista. Nos documentos oficiais, especificamente no “Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas” ela é definida como “um campo de conhecimentos e de prática contínua e permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional…”. Até o momento não vi ninguém questionar esse paradoxo. A lei é arcaica ou o marco teórico é que pressupõe uma situação à margem daquilo que está estabelecido na legislação? O trabalho de pesquisadores e de jornalistas com os quais iniciei esta reflexão são exemplos de informações relevantes. Mas, e a educação? A tal da educação alimentar e nutricional. Quem faz? Como faz?

A inclusão do adjetivo “alimentar” justaposto ao “nutricional” na denominação do campo de conhecimento e de prática “educação alimentar e nutricional”, levou à abertura de um canal para que outros profissionais viessem a trabalhar nesse campo, uma vez que a prática alimentar pode ser analisada sob os mais diferentes aspectos. Isso foi bem-vindo, pois a nutrição está inserida neste contexto maior da alimentação humana. Porém, o aspecto nutricional é da competência de quem estudou nutrição. Criado o impasse: a quem compete então a educação alimentar e nutricional? Com que possibilidades e com quais limites? Ao longo do processo de construção da Política Nacional de Alimentação e Nutrição e dos documentos correlatos a ela, percebi colegas aderindo às ideias com um certo entusiasmo “politicamente correto”, mas pouco crítico e pouco realista. Em algumas oportunidades cheguei a fazer esse alerta: não é porque uma política tão necessária e ansiada pela categoria está sendo gestada, que devamos concordar com tudo o que está ali colocado.

Em minhas atividades de consultora, já venho me deparando com preocupações de profissionais responsáveis por programas de educação alimentar e nutricional, relativas à necessidade de criar meios para garantir que estas atividades se voltem realmente à promoção da alimentação saudável, culturalmente referenciada, como preconizam os documentos. Ora, na medida em que o processo sai das mãos dos técnicos, a observância de princípios básicos de nutrição pode ir por água abaixo. E tem acontecido.

Também não é verdade que a educação alimentar e nutricional se fará apenas pelos meios de divulgação para o grande público, através das mídias sociais, de materiais impressos, joguinhos, etc. Mais do que nunca as ações profissionais nos âmbitos comunitários, de grupo e individuais, em ambulatórios e consultórios, também são necessários. Quando maior o nível de informação, mais frequentes e complexos são os questionamentos.

As ações desenvolvidas pelos nutricionistas no campo da educação alimentar e nutricional estão se diversificando e sendo sistematizadas por meio de métodos e nomenclaturas diversas. Mas não nos esqueçamos de que lidar com o comportamento humano é sempre um ato educativo. Mais do que nunca, compreender profundamente a natureza do processo educativo é fundamental. É necessário estar ciente de que a educação junto com a nutrição está presente em todas as ações profissionais nas quais se busca, enfim, melhorar a vida das pessoas melhorando a sua relação com a alimentação. As informações de caráter epidemiológico, as tendências no consumo de alimentos e as informações disponíveis sobre a evolução do estado nutricional são também fundamentais para a seleção de ações e conteúdos em programas educativos. Não é trabalho para leigos. As bases teóricas da Educação Alimentar e Nutricional estão neste tripé: ciência da nutrição, ciências humanas (pedagogia, psicologia, psicanálise, sociologia, antropologia) e epidemiologia. É por meio desse olhar cuidadoso e multidisciplinar que as ações de educação em nutrição devem ser concebidas e desenvolvidas. Por quem? Com que formação? Com quais conhecimentos? Com que objetivos? Com quais critérios técnicos e éticos?


¹Professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas. Autora do livro “Educação em Nutrição – integrando experiências“. O texto foi reproduzido do site Educação em Nutrição: originalmente publicado em sua seção Opinião Crítica, em 31/08/2015.

Martín Caparrós: entendendo a fome

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Por Guilherme Freitas, via Globo.com

Em uma aldeia no Níger, no oeste da África, o argentino Martín Caparrós conheceu Aisha, uma mulher de trinta e poucos anos que se alimentava com uma bola de farinha de milho “todos os dias que posso”. Jornalista experiente em dramas sociais, Caparrós perguntou a ela o que pediria a um mago se tivesse direito a um desejo. “Uma vaca”, respondeu Aisha, e quando Caparrós insistiu que poderia escolher qualquer coisa, ela disse: “Duas vacas. Com duas, sim, eu nunca mais teria fome”.

A história de Aisha é o ponto de partida do livro “A fome” (Bertrand Brasil), ambiciosa mescla de reportagem, ensaio e manifesto que Caparrós construiu ao longo de seis anos, em viagens por países da África (Níger, Sudão do Sul, Madagascar), da Ásia (Índia, Bangladesh) e da América (Argentina, EUA). Em cada lugar, encontrou diversas definições de “fome”. Por trás de todas, porém, uma mesma lógica: um planeta que produz alimento suficiente para toda a população, mas ainda assim deixa quase 1 bilhão de pessoas desnutridas, porque “alguns de nós concentramos recursos de tal modo que muitos ficam sem nada”, diz Caparrós.

imagemO senhor diz que decidiu fazer um livro sobre a fome “porque, se não fizesse, não me suportaria”. Como esse tema surgiu em sua vida?

Escrevo reportagens sobre temas sociais e políticos há muitos anos, em muitas partes do mundo, e sempre notei que, por trás de cada um dos problemas que analisava, havia um que se repetia como pano de fundo, quase invisível: o fato de que muitas pessoas não tinham comida suficiente. Olhando melhor, me parecia mais e mais vergonhoso: o fato de um mundo que produz comida suficiente para 12 bilhões de pessoas deixar quase 1 bilhão delas sem alimentos é uma grande canalhice. Por isso, decidi trazer o pano de fundo para o primeiro plano e escrever um livro sobre a fome. Mas era difícil, porque “a fome no mundo” é um clichê sobre o qual todos sabemos o que queremos saber — e que nunca é muito. Para não cair no lugar-comum, entendi que não existe “a fome”, e sim pessoas — centenas de milhões de pessoas — que passam fome, e eu queria escutar algumas delas.

Como o contato com essas pessoas mudou sua compreensão do drama da fome?

Não sei se mudou, eu diria que aprofundou, trouxe novos matizes. Seria uma bobagem pensar que todas as pessoas que passam fome pensam e sofrem da mesma maneira. Quis deixar de lado a facilidade de converter as pessoas em números, e encará-las como são. Muitas histórias me impressionaram: uma mulher em Daca, a capital de Bangladesh, me contou que, quando não tinha comida suficiente para os filhos, colocava uma panela com água no fogão, enchia de pedras ou galhos, e dizia para as crianças dormirem um pouco, que ela as acordaria quando o jantar estivesse pronto… Assim os garotos dormiam tranquilos. Não quis perguntar como ela fazia para o truque funcionar depois de duas, três, dez vezes. Acho que, ao menos nessa ocasião, preferi não saber.

“A fome tem muitas causas, mas a falta de comida não é uma delas”, o senhor escreve. E afirma que os casos mais graves de fome hoje “são causados pelas mãos de algum homem” ou por “uma decisão do poder”. Se o planeta produz alimento suficiente para todos, por que a fome persiste em tantos lugares?

getresourceÉ importante não confundir fome com hambruna (termo espanhol que significa uma crise humanitária de fome em larga escala). Hambruna é o estado de emergência em que algum acidente — guerras, tragédias, secas — faz com que muita gente não tenha acesso à comida. Isso, por sorte, já não é tão frequente. Por sua vez, a fome é a privação sistemática que sofrem 800 milhões de pessoas em todo o mundo que, dia após dia, não comem o suficiente. As razões são múltiplas, mas, sintetizando muito: porque alguns de nós concentramos os recursos do planeta de tal modo que muitos ficam sem nada. O planeta produz o suficiente para todos, só que o sistema econômico e comercial global está armado para prover os mais ricos — e deixar de lado os mais pobres.

Como avalia a ajuda humanitária aos países que enfrentam crises de fome?

Nas emergências, a ajuda humanitária é útil e eficiente. O problema é manter essa política assistencial nos processos de longo prazo: prover infraestrutura necessária — terras, irrigação, máquinas, sementes, depósitos, estradas — para que todos possam comer sem necessidade de receber bolsas da Europa ou dos EUA, sem depender das decisões de outros.

O livro narra o aumento de preços dos alimentos a partir da crise de 2008 e os conflitos por comida nos últimos anos em países como Egito, Burkina Faso e EUA. Que novos conflitos podem ocorrer por causa de alimentos?

Essa crise foi uma amostra do que pode acontecer quando os preços dos alimentos sobem bruscamente: a Primavera Árabe, conflitos violentos ou não violentos em cerca de 50 países. Diz-se que podem acontecer guerras por água ou comida, sem pensar que essa guerra existe desde sempre e está aqui o tempo todo. O que acontece agora é que um dos lados da guerra — os países ricos, os habitantes ricos dos países pobres — está vencendo com tanta vantagem que não precisa de operações militares. Para centenas de milhões de pessoas, isso que chamamos de paz é a aceitação da derrota. E elas pagam por essa derrota um preço muito alto: a desnutrição.


 

O escritor argentino esteve na III Bienal da Leitura e do Livro de Brasília, onde lançou seu livro “A Fome”. Acompanhe a entrevista, publicada no Youtube em 02/01/2017, para o programa Ponto de Vista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Segredo de Minerva

cover_front_bigA cidade de São Paulo completou, nesta semana, 463 anos de fundação. Já é, portanto, uma senhora de respeito. Não estive a par das comemorações, mas invariavelmente são as mesmas coisas todos os anos. Parece que, nesta vez, a novidade foi a volta do Bolo do Bixiga, que havia parado por falta de patrocínio. Feliz ou infelizmente, a população não o despedaçou em questão de minutos – pelo contrário, civilizadamente, cada qual recebeu um pedaço. No fundo, tanto quanto a tradição de sempre fazer um bolo maior do que no ano anterior, havia também a graça (ou o horror) de contabilizar, em centésimos de segundos, o tempo que o bolo seria devorado pela multidão.

Para quem não conhece, esse Bixiga é também a Bela Vista, antigo bairro de imigrantes italianos, colado à Liberdade – outrora também um reduto de estrangeiros (japoneses, em sua maioria). Hoje, esses bairros centrais têm ocupação bem mais popular – sendo, aqui e ali, pontilhados de moradias coletivas (cortiços, como a tal “Saudosa Maloca” cantada pelo querido Adoniran Barbosa).

É nessa São Paulo mais do que quatrocentona, mutante e tão cheia de detalhes que se passa “O Segredo de Minerva”, do estreante Fernando Cilio. E Sampa está tão intimamente ligada ao desenrolar deste romance policial-esotérico que já nas primeiras páginas troca a condição de cenário pela de personagem a ser decifrada, quase protagonista, das venturas e desventuras de Matheus e Maria Eduarda – dupla que preenche as mais de 300 páginas do livro.

Cilio foi generoso em partilhar com seus leitores o resultado de suas pesquisas em torno dos muitos símbolos maçônicos e religiosos espalhados pela cidade. Usando-os, tanto os ocultos quanto aqueles do tamanho de um prédio, o autor teceu uma delicada, intrigante e saborosa rede de implicações, em um jogo que conduz o leitor pelos muitos labirintos da metrópole. Por isso, é preciso fôlego e atenção para acompanhar a história, que, por vezes, adota ritmo de videoclipe, enquanto, outras vezes, é professoral e didática, ensinando-nos o que, em outra parte, não aprenderíamos sobre a história da igreja romana ou sobre a maçonaria – duas das instituições igualmente presentificadas no texto (a polícia paulista também ganhou destaque nesta história escrita por um advogado que já foi policial – e que entende de vinhos e de alta gastronomia como poucos).

Aliás, quem conhecer o autor pessoalmente, que mantém uma pequena e charmosa adega na agradável Águas de São Pedro, no interior paulista, pode adivinhar algumas notas biográficas no personagem Matheus – e talvez esboçar, aqui e ali, um pequeno sorriso maroto. Certamente valerá a pena pensar quem seria cada um dos outros personagens, se a vida imitasse a arte – e não o contrário. Mas não é preciso conhecer o autor para reconhecer-lhe o talento na construção desses personagens, no uso dos cenários e, principalmente, na formatação das muitas cenas de ação – dignas de filmes hollywoodianos.

Numa São Paulo carente de áreas verdes, o autor, simbolicamente, começou e terminou sua trama em dois importantes parques paulistanos. Por falar em terminar, lembro-me de, na primeira vez que li, não ter gostado nenhum pouquinho do final: achei-o fora de contexto. Na segunda vez, contudo, compreendi o desfecho e o entendi como uma ideia brilhante e, ao mesmo tempo, surpreendente – e que permite imaginar que há muito mais história para ser contada. Ainda bem.

Autor: Fernando Cilio

Título: O Segredo de Minerva

Editora: Clube de Autores

ISBN: 9990051870688

Páginas: 363

 

Pesquisa em saúde corre risco

De autoria dos pesquisadores Augusto César Ferreira de Moraes (Universidade de São Paulo, Universidade Johns Hopkins), Francisco Leonardo Torres-Leal (Universidade Federal do Piauí, ONutricional) e Gilson Luiz Volpato (Universidade Estadual Paulista), texto faz críticas ao remanejamento de verbas destinado à pesquisa em São Paulo, estado responsável por 35% da produção científica nacional. O texto foi publicado na Revista Saúde (on line), no dia 25 de janeiro de 2017.


 

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A comunidade científica foi surpreendida com uma decisão política esdrúxula do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, com o apoio da Câmara de Deputados. Ele ordenou a redução do repasse à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) de 1% para 0,89% da receita tributária do estado.

A medida retira 120 milhões de reais da Fapesp. O governador alegou que essa diferença será direcionada aos Institutos de Pesquisa do Estado — um total de 19 organizações, que inclui os tradicionais institutos Butantan, Pasteur e Adolfo Lutz.

Tal fato é inaceitável. Primeiro porque fere a constituição do estado, que menciona no artigo 217: “O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico”.

Segundo: o fato de o governo destinar essa verba aos Institutos de Pesquisa do Estado, extraindo-a da Fapesp, é uma ingerência brutal à administração estratégica e financeira dessa fundação. Afinal, cabe a ela direcionar o dinheiro que por lei lhe é garantido.

É claro que esse governo tem obrigação de zelar pelos Institutos de Pesquisa do Estado, principalmente por meio de financiamentos de infraestrutura e de recursos humanos. Porém, tal apoio deve ser conduzido com verbas adicionais — jamais desviadas do que nossa ciência já tem por direito.

Os cientistas do estado de São Paulo são responsáveis por 35% da produção nacional, com diversas pesquisas de destaque internacional. Recentemente, o referido governador falou em público que a “Fapesp gasta dinheiro com pesquisas acadêmicas sem nenhuma utilidade prática para a sociedade ou projetos sem relevância para saúde da população”.

Essas palavras, além de serem um completo desrespeito com a entidade e com os professores que recebem seus subsídios, revelam profundo desconhecimento sobre como funciona a ciência e suas relações com a tecnologia. Não há aplicação sem que haja conhecimento teórico forte: esse é o caminho da ciência à tecnologia.

Um exemplo clássico é o desenvolvimento do raio laser. Quando Theodore Maiman disparou o primeiro pulso de laser, em 1960, seu assistente D’Haenens descreveu a nova tecnologia como uma solução à procura de um problema. Ou seja, na época, ele não “servia para nada na prática”. Hoje, temos muitos problemas que são resolvidos com o laser, em especial na área da saúde.

As soluções de desafios práticos costumam vir da aplicação de conhecimento científico de alto nível, mesmo que desprovidos de aplicabilidade em sua origem. Veja, também, que a teoria quântica trouxe novos conceitos na área de informática, com desdobramentos práticos impressionantes, seguramente não imaginados durante a construção dessa teoria.

Por isso a Fapesp investe em ciência básica — sem deixar de enfatizar pesquisas direcionadas e empregadas para questões que claramente requerem solução. Ela é uma instituição ímpar em nosso país, que deveria ser motivo de orgulho do governo, que a sustenta com força de lei.

Ciência é saúde

Em 2013, cientistas da Faculdade de Medicina da USP demonstraram que a capacidade de produzir estudos científicos de qualidade está diretamente relacionada com a preservação da saúde humana. Essa relação está condicionada à capacidade das autoridades locais em criar políticas e infraestruturas básicas para o desenvolvimento de projetos de pesquisa de qualidade.

Ou seja, países que fomentam investigações científicas sérias exibem populações com melhores indicadores de saúde. Portanto, a restrição financeira feita pelo governo paulista à Fapesp significará prejuízo direto e indireto para a saúde e tantas outras áreas prioritárias da ciência nacional.

O fato contestado nesse texto apenas reforça o que a presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, mencionou dias atrás ao trazer as palavras do antropólogo Darci Ribeiro, proferidas em 1982: “Se os governantes não construírem escolas agora, daqui 20 anos, não haverá dinheiro para construir presídios suficientes.”