Martín Caparrós: entendendo a fome

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Por Guilherme Freitas, via Globo.com

Em uma aldeia no Níger, no oeste da África, o argentino Martín Caparrós conheceu Aisha, uma mulher de trinta e poucos anos que se alimentava com uma bola de farinha de milho “todos os dias que posso”. Jornalista experiente em dramas sociais, Caparrós perguntou a ela o que pediria a um mago se tivesse direito a um desejo. “Uma vaca”, respondeu Aisha, e quando Caparrós insistiu que poderia escolher qualquer coisa, ela disse: “Duas vacas. Com duas, sim, eu nunca mais teria fome”.

A história de Aisha é o ponto de partida do livro “A fome” (Bertrand Brasil), ambiciosa mescla de reportagem, ensaio e manifesto que Caparrós construiu ao longo de seis anos, em viagens por países da África (Níger, Sudão do Sul, Madagascar), da Ásia (Índia, Bangladesh) e da América (Argentina, EUA). Em cada lugar, encontrou diversas definições de “fome”. Por trás de todas, porém, uma mesma lógica: um planeta que produz alimento suficiente para toda a população, mas ainda assim deixa quase 1 bilhão de pessoas desnutridas, porque “alguns de nós concentramos recursos de tal modo que muitos ficam sem nada”, diz Caparrós.

imagemO senhor diz que decidiu fazer um livro sobre a fome “porque, se não fizesse, não me suportaria”. Como esse tema surgiu em sua vida?

Escrevo reportagens sobre temas sociais e políticos há muitos anos, em muitas partes do mundo, e sempre notei que, por trás de cada um dos problemas que analisava, havia um que se repetia como pano de fundo, quase invisível: o fato de que muitas pessoas não tinham comida suficiente. Olhando melhor, me parecia mais e mais vergonhoso: o fato de um mundo que produz comida suficiente para 12 bilhões de pessoas deixar quase 1 bilhão delas sem alimentos é uma grande canalhice. Por isso, decidi trazer o pano de fundo para o primeiro plano e escrever um livro sobre a fome. Mas era difícil, porque “a fome no mundo” é um clichê sobre o qual todos sabemos o que queremos saber — e que nunca é muito. Para não cair no lugar-comum, entendi que não existe “a fome”, e sim pessoas — centenas de milhões de pessoas — que passam fome, e eu queria escutar algumas delas.

Como o contato com essas pessoas mudou sua compreensão do drama da fome?

Não sei se mudou, eu diria que aprofundou, trouxe novos matizes. Seria uma bobagem pensar que todas as pessoas que passam fome pensam e sofrem da mesma maneira. Quis deixar de lado a facilidade de converter as pessoas em números, e encará-las como são. Muitas histórias me impressionaram: uma mulher em Daca, a capital de Bangladesh, me contou que, quando não tinha comida suficiente para os filhos, colocava uma panela com água no fogão, enchia de pedras ou galhos, e dizia para as crianças dormirem um pouco, que ela as acordaria quando o jantar estivesse pronto… Assim os garotos dormiam tranquilos. Não quis perguntar como ela fazia para o truque funcionar depois de duas, três, dez vezes. Acho que, ao menos nessa ocasião, preferi não saber.

“A fome tem muitas causas, mas a falta de comida não é uma delas”, o senhor escreve. E afirma que os casos mais graves de fome hoje “são causados pelas mãos de algum homem” ou por “uma decisão do poder”. Se o planeta produz alimento suficiente para todos, por que a fome persiste em tantos lugares?

getresourceÉ importante não confundir fome com hambruna (termo espanhol que significa uma crise humanitária de fome em larga escala). Hambruna é o estado de emergência em que algum acidente — guerras, tragédias, secas — faz com que muita gente não tenha acesso à comida. Isso, por sorte, já não é tão frequente. Por sua vez, a fome é a privação sistemática que sofrem 800 milhões de pessoas em todo o mundo que, dia após dia, não comem o suficiente. As razões são múltiplas, mas, sintetizando muito: porque alguns de nós concentramos os recursos do planeta de tal modo que muitos ficam sem nada. O planeta produz o suficiente para todos, só que o sistema econômico e comercial global está armado para prover os mais ricos — e deixar de lado os mais pobres.

Como avalia a ajuda humanitária aos países que enfrentam crises de fome?

Nas emergências, a ajuda humanitária é útil e eficiente. O problema é manter essa política assistencial nos processos de longo prazo: prover infraestrutura necessária — terras, irrigação, máquinas, sementes, depósitos, estradas — para que todos possam comer sem necessidade de receber bolsas da Europa ou dos EUA, sem depender das decisões de outros.

O livro narra o aumento de preços dos alimentos a partir da crise de 2008 e os conflitos por comida nos últimos anos em países como Egito, Burkina Faso e EUA. Que novos conflitos podem ocorrer por causa de alimentos?

Essa crise foi uma amostra do que pode acontecer quando os preços dos alimentos sobem bruscamente: a Primavera Árabe, conflitos violentos ou não violentos em cerca de 50 países. Diz-se que podem acontecer guerras por água ou comida, sem pensar que essa guerra existe desde sempre e está aqui o tempo todo. O que acontece agora é que um dos lados da guerra — os países ricos, os habitantes ricos dos países pobres — está vencendo com tanta vantagem que não precisa de operações militares. Para centenas de milhões de pessoas, isso que chamamos de paz é a aceitação da derrota. E elas pagam por essa derrota um preço muito alto: a desnutrição.


 

O escritor argentino esteve na III Bienal da Leitura e do Livro de Brasília, onde lançou seu livro “A Fome”. Acompanhe a entrevista, publicada no Youtube em 02/01/2017, para o programa Ponto de Vista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pesquisa em saúde corre risco

De autoria dos pesquisadores Augusto César Ferreira de Moraes (Universidade de São Paulo, Universidade Johns Hopkins), Francisco Leonardo Torres-Leal (Universidade Federal do Piauí, ONutricional) e Gilson Luiz Volpato (Universidade Estadual Paulista), texto faz críticas ao remanejamento de verbas destinado à pesquisa em São Paulo, estado responsável por 35% da produção científica nacional. O texto foi publicado na Revista Saúde (on line), no dia 25 de janeiro de 2017.


 

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A comunidade científica foi surpreendida com uma decisão política esdrúxula do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, com o apoio da Câmara de Deputados. Ele ordenou a redução do repasse à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) de 1% para 0,89% da receita tributária do estado.

A medida retira 120 milhões de reais da Fapesp. O governador alegou que essa diferença será direcionada aos Institutos de Pesquisa do Estado — um total de 19 organizações, que inclui os tradicionais institutos Butantan, Pasteur e Adolfo Lutz.

Tal fato é inaceitável. Primeiro porque fere a constituição do estado, que menciona no artigo 217: “O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico”.

Segundo: o fato de o governo destinar essa verba aos Institutos de Pesquisa do Estado, extraindo-a da Fapesp, é uma ingerência brutal à administração estratégica e financeira dessa fundação. Afinal, cabe a ela direcionar o dinheiro que por lei lhe é garantido.

É claro que esse governo tem obrigação de zelar pelos Institutos de Pesquisa do Estado, principalmente por meio de financiamentos de infraestrutura e de recursos humanos. Porém, tal apoio deve ser conduzido com verbas adicionais — jamais desviadas do que nossa ciência já tem por direito.

Os cientistas do estado de São Paulo são responsáveis por 35% da produção nacional, com diversas pesquisas de destaque internacional. Recentemente, o referido governador falou em público que a “Fapesp gasta dinheiro com pesquisas acadêmicas sem nenhuma utilidade prática para a sociedade ou projetos sem relevância para saúde da população”.

Essas palavras, além de serem um completo desrespeito com a entidade e com os professores que recebem seus subsídios, revelam profundo desconhecimento sobre como funciona a ciência e suas relações com a tecnologia. Não há aplicação sem que haja conhecimento teórico forte: esse é o caminho da ciência à tecnologia.

Um exemplo clássico é o desenvolvimento do raio laser. Quando Theodore Maiman disparou o primeiro pulso de laser, em 1960, seu assistente D’Haenens descreveu a nova tecnologia como uma solução à procura de um problema. Ou seja, na época, ele não “servia para nada na prática”. Hoje, temos muitos problemas que são resolvidos com o laser, em especial na área da saúde.

As soluções de desafios práticos costumam vir da aplicação de conhecimento científico de alto nível, mesmo que desprovidos de aplicabilidade em sua origem. Veja, também, que a teoria quântica trouxe novos conceitos na área de informática, com desdobramentos práticos impressionantes, seguramente não imaginados durante a construção dessa teoria.

Por isso a Fapesp investe em ciência básica — sem deixar de enfatizar pesquisas direcionadas e empregadas para questões que claramente requerem solução. Ela é uma instituição ímpar em nosso país, que deveria ser motivo de orgulho do governo, que a sustenta com força de lei.

Ciência é saúde

Em 2013, cientistas da Faculdade de Medicina da USP demonstraram que a capacidade de produzir estudos científicos de qualidade está diretamente relacionada com a preservação da saúde humana. Essa relação está condicionada à capacidade das autoridades locais em criar políticas e infraestruturas básicas para o desenvolvimento de projetos de pesquisa de qualidade.

Ou seja, países que fomentam investigações científicas sérias exibem populações com melhores indicadores de saúde. Portanto, a restrição financeira feita pelo governo paulista à Fapesp significará prejuízo direto e indireto para a saúde e tantas outras áreas prioritárias da ciência nacional.

O fato contestado nesse texto apenas reforça o que a presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha, mencionou dias atrás ao trazer as palavras do antropólogo Darci Ribeiro, proferidas em 1982: “Se os governantes não construírem escolas agora, daqui 20 anos, não haverá dinheiro para construir presídios suficientes.”

A contribuição da Educação Popular para a formação profissional em saúde

 

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A Revista Interface – Comunicação, Saúde e Educação – trouxe, em seu último volume de 2016 [v.20(59), 2016], um editorial com o tema “Educação popular e saúde”. Escrito pelos professores Eymard Mourão Vasconcelos (Rede de Educação Popular e Saúde, João Pessoa/PB), Pedro José Santos Carneiro Cruz (Departamento de Promoção da Saúde, Centro de Ciências Médicas, Universidade Federal da Paraíba – UFPB) e Ernande Valentin do Prado (Grupo de Pesquisa em Educação Popular em Saúde, UFPB), o texto  estimula, de maneira provocativa, o debate sobre a eficácia das práticas pedagógicas utilizadas no processo de formação do profissional da área de saúde. Confira!


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No campo educacional brasileiro, o setor saúde tem se destacado pela amplitude e radicalidade das mudanças em relação aos processos pedagógicos voltados para a formação de seus profissionais, tanto no ensino técnico e universitário como nas ações educativas para os trabalhadores de suas políticas públicas.

Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, oportunizou-se uma grande expansão de serviços de atenção primária à saúde, cujos serviços estão muito inseridos na dinâmica da vida comunitária. Isso tem demandado novas necessidades de abordagem e ação profissional, bem como tem desvelado, de maneira mais contundente, pressões e demandas da população que a tradição teórica e prática das diversas profissões de saúde não está preparada para responder. Insatisfações, cobranças e insuficiências quanto aos modos de agir em saúde no cotidiano dos serviços e territórios criaram um clima cultural e político propício para a expansão de muitas iniciativas e propostas de mudança no ensino.
O Ministério da Saúde (MS) foi provocado, como nenhum outro setor das políticas sociais, a intervir diretamente nos currículos dos cursos universitários e técnicos, que antes eram orientados apenas pelas intervenções do Ministério da Educação. Nesse processo, houve incentivo para que secretarias estaduais e municipais de saúde passassem a investir amplamente em processos formativos, que passaram a se orientar pela Política Nacional de Educação Permanente em Saúde no SUS.

Tanto no ensino universitário e técnico, quanto nas ações formativas para os profissionais dos serviços, assistiu-se a uma ampla difusão de inovações metodológicas das práticas pedagógicas e formativas, com grande valorização do que se passou a denominar, de maneira genérica, como metodologias ativas e problematizadoras. Na maioria das vezes, as práticas educativas que utilizam essa denominação pouco valorizam uma leitura crítica da realidade concreta onde os educandos estão inseridos e nem priorizam o debate e a explicitação dos interesses e das intencionalidades políticas presentes nas questões discutidas. A desvalorização dessa discussão mais ampla é conveniente para grupos interessados em fazer mudanças apenas operacionais das práticas profissionais, buscando, sobretudo, o aumento da eficácia técnica às novas demandas sem questionar os contextos, objetivos e interesses institucionais.

Apesar da grande difusão das metodologias ativas e problematizadoras, é ainda dominante, nas práticas educativas concretas do SUS, uma pedagogia centrada na difusão autoritária de informações e condutas, realizada sem mesmo esta preocupação de renovação metodológica acrítica e que Paulo Freire denominaria de educação bancária. Nela, profissionais de saúde e gestores se veem como portadores de verdades que precisam ser inculcadas e generalizadas na população e nos profissionais subalternos. São práticas pedagógicas que se reproduzem a partir da falta de investimento no estudo crítico dos desafios pedagógicos presentes no trabalho em saúde.

Mas vêm crescendo o debate e a constituição de ações mais elaboradas de educação permanente no SUS, em que tem predominado a visão de autores articulados, sobretudo, pela linha de Pesquisa Micropolítica do Trabalho e do Cuidado em Saúde. Esse predomínio teórico e político tem gerado, muitas vezes, a noção de que há uma equivalência entre ela e o conceito de educação permanente. Internacionalmente, no entanto, o conceito de educação permanente é campo de disputa de várias correntes pedagógicas e políticas. A percepção dessa equivalência só existe na saúde pública brasileira.

O movimento de renovação do ensino universitário e técnico por meio de
metodologias ativas e problematizadoras tem acontecido, sobretudo, por meio da concepção educativa denominada Pedagogia Baseada em Problemas (PBL). É uma corrente pedagógica centrada no ensino mais dinâmico de conhecimentos considerados importantes, mas que desvaloriza a discussão crítica dos contextos mais gerais implicados no ensino e no trabalho em saúde.

Até recentemente, a Educação Popular (EP) vinha sendo pouco considerada no debate conceitual sobre educação permanente e reorientação curricular dos cursos de graduação e técnicos do setor saúde. Tal fato se deve, em parte, pelo predomínio da noção de que a EP se orienta apenas para ações educativas voltadas para o público popular. Contudo, o termo Popular não se refere ao público a que se destina a prática formativa, mas, sim, aos pressupostos éticos, à perspectiva política e às abordagens metodológicas que a orientam. Refere-se à valorização dos saberes e das iniciativas dos educandos nos processos educativos, sobretudo pela construção compartilhada do conhecimento, com o compromisso explícito de fortalecimento do protagonismo das classes populares para o
enfrentamento das iniquidades e situações de exclusão social, para a construção de uma sociedade justa, solidária e democrática.

A EP é uma proposta teórica e prática de condução de processos pedagógicos, consolidada na América Latina a partir da década de 1960, que foi muito importante para a formação de lideranças do movimento político que tomou a frente do processo de criação do SUS e da luta por seu aprimoramento. Vem orientando inúmeras práticas de atenção em saúde e ações de movimentos sociais que se relacionam com os serviços, buscando sua ampliação, seu aperfeiçoamento e sua construção cotidiana de modo integrado à dinâmica comunitária, de modo valorativo dos saberes, das práticas e das prioridades das pessoas em seus contextos territoriais. Recentemente, passou a se ocupar, também, com o
repensar da formação dos profissionais de saúde.

No movimento nacional de educadores populares da saúde, especialmente na Rede de Educação Popular e Saúde (http://www.redepopsaude.com.br/), têm sido crescentemente divulgadas e refletidas experiências educativas voltadas para formar doutores e técnicos do setor saúde, como as publicadas em livros, e em vários artigos, alguns dos quais publicados pela Interface, em especial, no suplemento sobre educação popular em saúde.

Nas universidades, iniciativas de extensão orientadas pela EP têm se fortalecido e já constituíram um movimento próprio, a Articulação Nacional de Extensão Popular – ANEPOP (http://www.extensaopopular.blogspot.com) com importantes publicações. Disciplinas dos cursos de graduação começam a buscar na EP inspiração para se organizarem.

Construída a partir de reivindicações e propostas dos vários movimentos nacionais de Educação Popular em Saúde, por meio do Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS) foi oficializada em 20137, e tem gerado muitas iniciativas de educação permanente no SUS, como o Programa de Qualificação em Educação Popular em Saúde EdpopSUS (http://www.edpopsus.epsjv.fiocruz.br/) e o Projeto de Pesquisa e Extensão VEPOP-SUS: Vivências de Extensão em Educação Popular e Saúde no SUS (http://www.vepopsus.blogspot.com), cuja ação é nacional, com equipe executiva ancorada na UFPB. Por meio da PNEPS-SUS, o MS tem também produzido publicações para fortalecer a concepção de EP no SUS, como os Cadernos de Educação Popular em Saúde (http://pesquisa.bvsalud.org/bvsms/resource/pt/mis-36844). Em vários estados brasileiros estão se formando comitês estaduais de EP para incentivar que secretarias de saúde valorizem a EP em suas políticas de educação permanente.

Mas em que a EP contribui para a formação profissional?

Para avançar nesta questão, foi organizado em João Pessoa, no mês de novembro de 2014, o I Seminário Nacional de Educação Popular na Formação em Saúde  (http://seminarioepsformacao.blogspot.com.br/). Desde então, o tema passou a ser mais enfatizado nas iniciativas do movimento da EP em saúde, com organização de mesas-redondas, cursos, oficinas e palestras em vários congressos da saúde coletiva brasileira.

Para a EP, a problematização deixa de ser apenas uma estratégia didática, ou, mesmo, um jeito dinâmico de ensinar, para ser um desafio de pesquisa compartilhada entre os educadores e educandos, comprometida com problemas concretos vividos no trabalho e na sociedade. Não é um recurso metodológico para facilitar o ensino de conteúdos predefinidos, mas um comprometimento com os desafios trazidos pela dinâmica de adoecimento e luta pela saúde das pessoas e da sociedade, em um contínuo processo de reflexão, ação, reflexão.

Uma problematização aberta para o novo, o ainda não pensado, e que enfatiza o diálogo autêntico, ou seja, aquele que parte do reconhecimento, pelo educador, dos limites de seus conhecimentos diante dos desafios apresentados por educandos e pela realidade. Busca não apenas o aprendizado mais intenso de conhecimentos considerados previamente como significativos, mas o fortalecimento do protagonismo dos educandos visando à formação de uma sociedade participativa e democrática. A democracia é, também, construída pelo protagonismo cognitivo dos trabalhadores nas instituições e dos cidadãos.

Pela EP, as dinâmicas ativas de ensino passam a ter o sentido de ajudar a explicitar conhecimentos prévios, sentimentos, perplexidades e dúvidas sutis e ainda pouco elaboradas, numa perspectiva de valorização dos saberes e interesses dos educandos e da população, e não uma estratégia para tornar o ensino mais interessante e alegre. Enfatiza não apenas o diálogo entre professor e aluno, pois inclui, no processo de problematização, os saberes e reivindicações dos grupos sociais menos favorecidos e com menor oportunidade de formulação clara e firme de seus interesses e perspectivas. As discussões precisam buscar respostas não apenas internamente entre os envolvidos na prática profissional local, pois elas estão correlacionadas às dinâmicas políticas, econômicas e culturais mais gerais da sociedade, que necessitam ser valorizadas.

Esta concepção valoriza o processo de construção conjunta do conhecimento e das ações de saúde, respeitando a presença de elementos imprevisíveis de emoção e afeto, presentes no encontro humano que se dá no cuidado em saúde. Abre-se para a construção de novos caminhos e processos de cuidado por parte dos trabalhadores a partir de suas próprias iniciativas, capacidades e de seus anseios, de maneira autônoma e compartilhada com os usuários. Inclui, ainda, a possibilidade de questionamento dos arranjos organizacionais dos sistemas de saúde, negando-se a ser concebida como técnica ou tecnologia e, tampouco, almejando ser, obrigatoriamente, seguida como algo imposto ao profissional de saúde para o eficiente funcionamento do sistema.

O aperfeiçoamento das ações de educação permanente não pode ficar restrito ao debate de autores, correntes teóricas e experiências internas ao setor saúde. Trata-se de um debate que atravessa os vários setores das políticas públicas e os diversos continentes do planeta. É importante trazer, para o setor saúde, a experiência e os autores desses outros campos.

Nos espaços de debates e reflexões ocorridos durante o I Seminário Nacional de Educação Popular na Formação em Saúde, priorizou-se o acolhimento e explicitação das diferentes concepções e perspectivas para a reorientação da formação profissional em saúde, em lugar de somente se enfatizar o pensamento próprio da EP. Abriu-se oportunidade para apresentação de pensadores de outras tradições pedagógicas, inclusive, representantes de órgãos governamentais, revelando a insistência do movimento de EP em propiciar debate crítico e reflexão conjunta e dialógica, sobre os vários caminhos de mudanças na formação
profissional em saúde.

Desse modo, acreditamos que a inclusão do movimento da EP em saúde no debate sobre formação profissional está ajudando a explicitar essas diferentes concepções teóricas e políticas presentes no campo.

Este debate está apenas começando. A continuidade na realização de espaços conjuntos de reflexão entre os diferentes, assim como a sistematização de experiências com explicitação de seus aprendizados, limites e desafios, são passos fundamentais e atuais.

Referências
1. Vasconcelos EM, Cruz PJ, organizadores. Educação popular na formação universitária; reflexões com base em uma experiência. São Paulo: Hucitec; 2011.
2. Vasconcelos EM, Frota LH, Simon E, organizadores. Perplexidade na universidade; vivências nos cursos de saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.
3. Mano MA, Prado EV, organizadores. Vivências de educação popular na atenção primária à saúde: a realidade e a utopia. São Carlos: EdUFSCar; 2010.
4. Melo Neto JF. Extensão Popular. João Pessoa: Editora UFPB; 2014.
5. Falcão EF. Vivência em comunidades: outra forma de ensino. João Pessoa: Editora UFPB; 2014.
6. Cruz PJSC, Vasconcelos MOD, Sarmento FIG, Marcos ML, Vasconcelos EM, organizadores. Educação Popular na Universidade; reflexões e vivências da Articulação Nacional de Extensão Popular (ANEPOP). São Paulo: Hucitec; 2013.
7. Portaria nº 2.761/2013. Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS (PNEPS-SUS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2013.