ONutricional

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Ano novo, novos tempos

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Por Luís Fernando Praga

Que eu consiga viver sem prejulgar,

Que eu não queira igualar as diferenças,

Que as diferenças sirvam pra somar,

E que por elas, refine as minhas crenças.

Mas que eu não feche os olhos pra desigualdade,

Não me proteja em palavras omissas,

E seja solidário na dor da humanidade,

Que me doam na carne as injustiças.

Que a vida continue uma surpresa,

E eu não me frustre na desilusão,

Que eu entenda que tudo é natureza,

Que eu não machuque nenhum coração.

Mas que os corações que eu machucar,

Percebam com o tempo, a minha humanidade,

Que não carreguem o peso do pesar,

E cada cicatriz revele uma verdade.

Que eu nunca veja amar como algo errado,

E não me porte de forma mesquinha,

Que eu veja um lado bom pra todo lado,

E que se eu odiar, que seja de mentirinha.

Que eu saiba dar valor ao bom humor,

Que as amizades sejam os bens mais caros,

Que cada espinho esconda muita flor,

E que os abraços sejam menos raros.

Que as pessoas encontrem sua arte,

Que nos seja uma meta a utopia,

Que a tolerância reine em toda parte,

E a guerra perca a guerra pra poesia.

Que eu saiba ser humilde pra saber,

Da minha imensurável pequenez,

Mas que eu jamais me furte de crescer,

Rompendo meus limites quando em vez.

Que eu tente intuir, mas com ciência,

Que não veja na morte uma vilã,

Que cada um amplie a consciência,

E a vida venha vindo menos vã.

Que o novo ano que me envelhece,

Não seja tão igual aos outros anos,

E que apesar da imperfeição de espécie,

Possamos ser perfeitamente humanos.

A Favelada

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Por Luís Fernando Praga

Num desses contrastes brasileiros, ela morava na favela ao lado. A mãe era diarista naquele bairro rico. O pai, ela jamais conheceu.

Quando era o dia das bruxas, sempre aparecia pra pedir doces. Desde os 6 aninhos, roupas péssimas e pés descalços que pareciam não sentir o chão quente, ela não ligava para humilhação que sofria das crianças limpas e bem educadas dali. Não se incomodava de ficar no fim da fila, de ter portas fechadas na cara, de ver expressões de nojo e ódio de alguns moradores e nem de ficar só com as sobras. Agradecia com um sorriso inibido e baixava os olhos.

Voltava pra casa à noite, sacolinha meio cheia, que para ela parecia um tesouro. Comia doces como nunca e levava um bom tanto para repartir com a mãe, que sempre chegava cansada.

Para a inocência de Cristina, o dia das bruxas representava uma das poucas lembranças boas da infância.

A mãe era jovem, 23 anos e trabalhava desde os 15 em casas de família no bairro nobre que avizinhava a favela. Não teve tempo nem vontade de concluir os estudos. Um dia voltou pra casa chorando. Havia sido estuprada no emprego. A mãe da mãe, muito religiosa, a colocou pra fora de casa. Ela se virou como pôde, arranjou um barraco onde pariu Cristina sozinha.

Iuri morava com os pais numa mansão suntuosa e não via com bons olhos a favelada que invadia as ruas de seu bairro para “roubar” os doces que, por mérito, deveriam ser dele e de seus amigos.

A mãe de Iuri recomendava cuidado e distância da favelada, que podia transmitir doenças, roubar, ou andar junto de algum adulto que o sequestrasse ou apresentasse drogas.

Cristina também evitava Iuri por medo.

Passada aquela data festiva, se viam novamente apenas no ano seguinte.

Naqueles intervalos de 365 dias, as duas crianças levavam suas vidas de formas diferentes.

Iuri sofria com a presença de gente como Cris, que se amontoava nas favelas da cidade. Gente violenta que, segundo seus pais, matava, roubava e sequestrava pessoas de bem o tempo todo.

Cris sofria com a falta de água, de saneamento básico e com as balas perdidas.

Iuri sofria por ter passado apenas 10 dias na Disney aquele ano, chorava, batia os pés e exigia algum bônus dos pais.

Cris sofria com o transporte público precário. Muitas vezes o ônibus não passava e ela perdia aula. Ela adorava sua escola simplesinha. Lá aprendera a ler precocemente. Era tímida, mas questionadora. Quando não podia ir, ficava triste e frustrada. Voltava para casa e aguardava algum carinho da mãe, que sempre chegava cansada, triste, frustrada e logo dormia, sem carinhos.

Iuri tinha um motorista particular e frequentava a melhor escola da cidade. Gostava de ser o centro das atenções, como seus pais o criaram para ser. Fazia bullying com meninas, com negros, com gordos e com gays e ficava muito indignado e infeliz quando algum professor chamava sua atenção.

Iuri sofria a vida toda, assim como seus pais e seus avós, com a ameaça comunista, que planejava dividir todas as suas posses com pessoas como Cris. Isso fez Iuri crescer com medo e ódio, assistindo televisão e pedindo a Deus que livrasse o seu amado Brasil daquele tipo de gente.

Cris também sofria algumas privações, passava frio, fome e adoecia facilmente. Nunca encontrara ninguém com a disposição de ajuda-la, muito menos de repartir as coisas dos ricos com ela. Não via ninguém na favela melhorar de vida graças à ajuda de quem quer que fosse. Nunca ela, sua mãe ou sua avó receberam qualquer tipo de benefício trazido por algum comunista e jamais vira um comunista na vida.

Iuri sofria e culpava o governo quando ocasionalmente a energia de seu bairro acabava. Era difícil receber os amigos sem videogame e ar condicionado. “País de merda!”, bradava Iuri. Fazia birra para os pais e exigia outro bônus. Os pais faziam a vontade de Iuri, não sem antes dizerem “país de merda!”.

A vida também não era um mar de rosas para Cris, mas ela nunca teve vontade de chamar o Brasil de “país de merda”. Para ela, mais do que refletir a condição do país, essa frase refletia o estado emocional de alguém descontrolado pelo estresse.

Aos 13 anos Cristina ainda foi ao dia das bruxas coletar doces naquele bairro de ricos onde a luz só acabava de vez em quando. Já ia voltar pra casa quando foi surpreendida por um grupo de meninos que roubou seus doces, cuspiu em seu rosto e a espancou. No final, Iuri disse para que ela nunca mais voltasse, a não ser para limpar as privadas.

Cristina chegou em casa profundamente ferida. A mãe perguntou dos doces e Cris contou, chorando, que não havia conseguido nenhum aquele dia. A mãe sorriu com olhos mareados pela tristeza da filha, disse que tudo bem e logo dormiu.

Naquela noite Cris sentiu que o mundo a odiava. Ela era preta num país onde a mídia exaltava que o bonito era ser branco. Ela era pobre num mundo que matava e prendia os pobres e onde ter sucesso na vida era ser rico. Ela era mulher num mundo machista de valores deturpados.

Deitou-se no colchonete precário e chorou muito. Tapou os ouvidos pra não ouvir seu choro, nem a briga e nem o amor dos vizinhos, nem cachorros latindo, nem a roda de samba e nem o tiroteio. Continuou chorando pelo desamor do mundo. Chorou mais, porque apesar disso tudo, ela não sabia o motivo, mas ainda desejava viver e isso tornava tudo mais difícil.

O sono não veio, o choro não passou e, naquela madrugada mágica, naquele triste barraco, ficaram apenas Cris e ela mesma.

A mão que tapava a orelha sem garantir o silêncio e começou a enrolar um dedo nos cabelos enrolados. Ela tentou se dar carinho. Recebeu, de si própria, seu primeiro cafuné. Ela amou acariciar seus cabelos e seu rosto e o fez com uma vontade libertadora. Acompanhou, delicadamente, com a ponta dos dedos, as lágrimas que corriam do canto do olho até o canto da boca. Ela amou se tocar, amou o fato de existir algum amor. Ela se amou profundamente e amou experimentar o prazer. Foi feliz naquele instante que tingiu pra sempre o mundo de outras cores.

A partir daquela madrugada Cristina aprendeu que podia fazer bem a si própria, por mais que Iuri e seus amigos a ofendessem e que dissessem de suas limitações. Por mais que nunca aparecesse nenhum comunista para torná-la menos pobre. Por mais que nenhum governo pudesse resolver seus problemas ou sequer soubesse de sua existência. Ela sentiu que era capaz de amar e ser feliz e sentiu a importância disso em sua vida. Desejou sofrer menos e entendeu que isso estava muito em suas mãos.

Passou a ler ainda mais, descobriu que havia gente que não cultivava ódios ou preconceitos e que ela era esse tipo de gente.

Conversou mais com a mãe, contava tudo o que aprendia na escola, na vida e dentro de si mesma. Fizeram uma horta no quintal. Criaram uma cooperativa de costureiras na favela e passaram a produzir as próprias roupas e a se vestir com dignidade. Faziam escambo das coisas que necessitavam e a mãe de Cristina deixou de ser explorada, passou a ter mais tempo com a filha para trocarem afetos e conselhos.

Cristina aprendeu que nem todo rico era cruel, mas a riqueza mal distribuída era sempre crueldade.

Aprendeu que nem todo pobre era bondoso e correto.

Aprendeu que havia muitos pobres no mundo, porque só esse tipo de gente se prestaria ao papel de manter os ricos ainda mais ricos, trabalhando por migalhas antes de uma morte precoce.

Entendeu que a miséria era o combustível da fortuna.

Aprendeu que havia pobres armados que assaltavam, matavam e faziam arrastões. Havia ricos que desviavam dinheiro público, queimavam mendigos que dormiam, estupravam e matavam travestis, mulheres e homossexuais.

Aprendeu que os ricos, e não os pobres, fomentavam a indústria armamentista e as guerras. Que as guerras matavam muito mais pobres do que ricos, e que das guerras vinham as armas que perpetuavam a violência no mundo.

Aprendeu que o ódio era uma droga legal e de efeito devastador sobre o cérebro humano, aceita e consumida livremente pela sociedade, e que bastava respirá-lo um pouco para o ódio viciar. Viu que a mídia fazia apologia constante a essa droga, polarizando opiniões, acirrando rivalidades, marginalizando diferenças, distorcendo a verdade e manipulando informações. Era um povo desunido que mantinha o sistema vigente.

Ela não quis aquilo para seu cérebro nem para seu coração. Preferiu explorar os limites daquele amor que ela sabia ser poderoso e possível.

Aprendeu que amor e ódio não escolhiam classes sociais.

Aprendeu sobre liberdade, sustentabilidade e solidariedade. Sobre as diferenças e a tolerância.

Estudou a justiça, a meritocracia e a hipocrisia.

Aprendeu sobre a luta das mulheres, e que a origem do dia das bruxas vinha de uma festa pagã, criada para louvar a uma Deusa Mãe, a Terra, em gratidão por uma colheita farta.

Aprendeu que houve um tempo em que bruxas eram mulheres livres e pensantes, que ameaçaram os desmandos de uma igreja e de uma sociedade machistas e gananciosas. Que elas foram queimadas em fogueiras de forma covarde e estúpida, por gente ignorante e cheia de medos, a fim de criar gerações de mulheres temerosas e submissas.

Aprendeu que gente com medo vivia uma vida limitada, atrelada a seu medo. Que o medo se convertia em submissão ou em agressividade. Que, percebendo isso, algumas pessoas e instituições se especializaram em semear e explorar o medo.

Lembrou-se de Iuri e seus amigos.

Envergonhou-se de mendigar doces por tanto tempo, mas depois riu da criança que fora.

Passados alguns anos, voltaram a se encontrar numa sala de aula de uma escola pública. Iuri não a reconheceu, com toda aquela nova auto estima e segurança, mas encantou-se por ela quando a viu chegando para o Exame Nacional do Ensino Médio.

Embora tivessem a mesma idade, morassem perto um do outro, tivessem cruzado seus caminhos várias vezes e além até de não saberem, mas serem filhos do mesmo pai, dali pra frente a vida os separou definitivamente.

Cristina continuou acreditando no amor, no conhecimento e nas mágicas surpresas da vida. Passou em uma boa faculdade e se torna uma mulher mais livre e plena a cada dia.

Iuri zerou na redação, administra as empresas do pai e continua viciado em ódio, cultivando a ignorância e sofrendo de medo.


Texto originalmente publicado em novembro de 2015, em Carta Campinas.

O dia do Professor

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Por Luís Fernando Praga

Joãozinho pega o coletivo diariamente às 5:30. Às 6:10 apanha o segundo ônibus que o deixa na porta da escola às 7:00. Cumprimenta alguns colegas e com sua pesada mochila entra ligeiro na sala para não atrasar o começo da aula. O professor Joãozinho atravessa a cidade, de uma periferia à outra para viver.

Viver, para Joãozinho, é fazer com que sua vida tenha algum sentido. É sentir prazer em aprender e poder ajudar pessoas a extraírem prazer do aprendizado. É transferir e trocar conhecimentos. É encontrar gente. É ter o que comer e onde morar dignamente. É tratar e ser tratado com respeito.

Jairo para em frente à escola e nota os olhares das meninas quando sai de seu carro esporte. Os meninos comentam e Jairo sente-se bem com a admiração das garotas e com a inveja dos garotos. Jairo mora a duas quadras daquela conceituada escola particular e, atraindo olhares, entra na sala atrasado e sem pedir licença à Cláudia, que pausa a explicação para que Jairo cumprimente e conte as novidades ao colega do lado.

Joãozinho tem uma classe com 40 alunos pobres, com histórias de privações e sofrimentos que comprometem o aproveitamento escolar. O professor sente que apesar de seu empenho, pouco do que diz é aproveitado. Nota, entretanto, que alguns alunos, como Janice, têm um brilho diferente nos olhos. É esse brilho, vindo do fascínio por aprender, que justifica todo o esforço empreendido por aluno e professor para estarem naquele lugar.

Cláudia vai pra escola de metrô e tem uma sala com 25 alunos, todos ricos, com histórias de abundância e prosperidade que comprometem também seu bom aproveitamento escolar. Cresceram acreditando ser melhores e mais dignos de viver do que outras pessoas. Os alunos de Cláudia se enxergam superiores a ela e consideram que não precisam de nada daquilo. Alunos com o olhar especial de Janice também existem naquela classe, como Humberto, e era apenas a eles que chegavam as palavras de Cláudia.

Apesar do desempenho escolar abaixo da média, os alunos de João são em regra muito obedientes, pois tiveram berço. Nasceram no berço de uma sociedade que afirma a todo instante que eles são piores que os demais. Que nunca conseguirão ter um carro ou uma casa como os da novela. Que se pegarem alguma doença banal irão morrer, pois não são ricos. Que jamais chamarão a atenção daquela paixão secreta, porque suas roupas são simples e puídas. Então, criados num berço que os fez crer que não valem nada, são submissos e passivos… enquanto não explodem.

Os alunos de Cláudia também tiveram berço. Em seu berço, Jairo e a maioria de seus colegas aprenderam que podiam de tudo, que eram a nata, que eram exemplos de sucesso e que todos desejam ser como eles. Aprenderam que estavam protegidos, pelas leis, pelo dinheiro e pelos muros e carros blindados, das injustiças, das doenças e dos pobres. Aprenderam nesse berço que são melhores que os demais e não devem prestar contas a gente de castas inferiores como Cláudia.

É complicado para João fazer seus alunos acreditarem que não são inferiores a ninguém, apesar do que dizem a sociedade e as novelas.

Cláudia tem dificuldades em mostrar a seus alunos que ter dinheiro não os faz superiores a seus semelhantes.

Enfrentar o desrespeito, a humilhação, a violência física e o assédio sexual de seus alunos é uma condição inerente ao trabalho de Cláudia. Ela precisava viver e seu viver é como o viver de João. Para comer e morar com dignidade ela se submete a dar aulas naquela escola.

Para completar-se como ser humano, em seu horário de almoço, Cláudia pega duas conduções, almoça no ônibus e chega à mesma escola da periferia onde o professor Joãozinho leciona de manhã.

João, para se alimentar e morar dignamente, em seu horário de almoço faz o caminho inverso e vai lecionar na escola particular onde Jairo estuda.

Quando Cláudia dá aulas na escola da periferia ela é mais respeitada do que na escola particular, mas ainda assim sofre abusos, pois alguns daquele alunos submissos lembram-se de terem aprendido que são inferiores a todo o resto, menos à mulher, e Cláudia é a oportunidade que esperavam para demonstrar algum tipo de superioridade e poder.

Mas o olhar de Janice misteriosamente compensa o perigo e a humilhação sofridos e Cláudia não desiste.

Jairo fica feliz quando Joãozinho entra na sala, pois agora pode exercitar seu preconceito de outra forma. Além de ser mais rico e poderoso que João, Jairo é branco e João é preto. A ignorância de Jairo o leva a entender aquilo como algo que rebaixe ainda mais seu professor, então Jairo abre sua caixa de ferramentas fascistas e piadas cruéis.

O olhar e os questionamentos de Humberto permitem que João releve as inconveniências infantis de Jairo e suporte passar por tudo aquilo.

À noite João e Cláudia se encontram em uma importante avenida da cidade. São grandes amigos e reivindicam melhores condições de trabalho para a categoria. Juntos, apanham de policiais que foram seus alunos naquela escola da periferia e que seguem ordens de políticos que foram seus alunos naquela escola particular.

Chegam a suas casas bem tarde, cansados e feridos, imaginando a difícil tarefa de enfrentar o dia seguinte. Não sabem explicar porque devem ir, mas sabem que irão para ver novamente os olhares de Janice e Humberto.

Percebem que Janice e Humberto são alunos diferentes, que não se deixaram iludir pelas supostas evidências sociais que os colocam em patamares evolutivos diferentes. São alunos que sabem que a sociedade está doente e acreditam que a cura está no conhecimento.

Cláudia e João ajudaram aqueles dois alunos a despertarem para o fato de que há uma infinidade de ignorâncias a se esclarecer.

Isso os tornou questionadores de certezas impostas e mais tolerantes com as ignorâncias alheias. Isso os impediu de se tornarem submissos a arbitrariedades ou arrogantes com quem passasse por situação de fragilidade. Isso os fez questionar os donos da verdade e os donos de pessoas.

Janice e Humberto não acreditam mais na sociedade que diz e age como se os negros, as mulheres e os pobres fossem inferiores. Não creem que alguém valha mais por ter mais dinheiro. Não se veem como superiores ou inferiores a ninguém, mas como gente, e sabem que gente tem sempre o que aprender e o que ensinar.

Professores como João e Cláudia conseguiriam facilmente outra ocupação que lhes garantisse um salário melhor para alimentar seus corpos, mas nenhuma ocupação poderia substituir aquela vocação, a única capaz de lhes provir um salário que alimente suas esperanças.

O tempo passou e João e Cláudia ainda lecionam. Ainda passam por situações difíceis e convivem com a injustiça diariamente, mas agradecem pela escolha que fizeram e se comovem nessa data, quando recebem a cada ano, mais e mais mensagens de Janices e Humbertos, cheias de carinho, notícias, questionamentos, reconhecimento, gratidão e no final há sempre um: “Você mudou a minha vida e isso não tem preço!”

Obrigado, prô!

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Texto originalmente publicado em outubro de 2015, em Carta Campinas.

Primavera

Por Luis Fernando Praga

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Vejo Dálias, Acácias e Tulipas,
Gardênias, Açucenas, Violetas.
Há crianças largadas nas sarjetas
E o céu venta um azul com muitas pipas.

Há Narcisos, Gerânios, e Hibiscos,
Crisântemos, Jacintos e Antúrios,
Há os ricos querendo ser mais ricos,
Narcisistas, hipócritas e espúrios.

O elixir extraído de uma flor
É um segredo muito bem guardado,
Capaz de dar alívio a tanta dor,
Só cura as dores do mais abastado.

Mas flores salvam vidas de quem sonha,
E há poucos sonhadores entre os meus.
Uns podam as Marias Sem Vergonha,
E outros vivem só de vender Deus.

Temos milhões de flores adoráveis
Espalhando-se em cores pelo chão
E pisamos bilhões de miseráveis
Pra que deles não reste um só botão.

Porém a primavera é milagrosa
E no concreto brota a Margarida
O nosso sangue rubro vai à Rosa
E segue além de nós a nossa vida.

Podemos sentir paz nesse jardim
Com flores diferentes lado a lado
Orquídeas não são mais do que o Jasmim,
E todo pólen é o mais sagrado.

Cada flor é por si uma lição,
Cada uma perfuma do seu jeito.
A leveza do Dente de Leão
Não crê em crises pro Amor Perfeito.

Na lenta cicatriz do nosso engano,
A Natureza atua enquanto espera
Que nos tornemos mais que húmus humano,
Pra florirmos nalguma primavera.

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Texto originalmente publicado em setembro de 2015, em Carta Campinas.

O Bardo Araújo

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Por Luis Fernando Praga

Há muitos anos, numa casinha situada entre duas igrejinhas, um tatara-trisavô do Araújo vivia uma fase difícil e precisava sentir-se mais feliz e realizado, então passou a convidar amigos para trocar ideias, matar a fome, a sede e a carência.

Araújo (chamarei a todos os Araújos de Araújo, independente do grau de parentesco com o primeiro Araújo) notou que as carências, dos mais variados tipos, eram inerentes ao ser humano, assim como certa inquietude meio torturante, então fez de sua casa um lugar onde as pessoas podiam trocar impressões sobre esses sentimentos e sobre as coisas da vida e da morte com total liberdade.

Com o passar do tempo o movimento aumentou e a casinha tornou-se uma taberna, que manteve a tradição de bem servir e de cozinhar com prazer, simplicidade e carinho até o último cliente.

Araújo percebeu que as pessoas eram muito diferentes entre si e que as diferenças não as afastavam da condição de serem seres humanos, por isso, ninguém era melhor nem pior, todos eram a mesma coisa, mas diferentes.

Ele ficava tão intrigado e aprendia tanto com as diferenças que passou a pedir aos clientes que deixassem seus pensamentos escritos nas paredes, nas mesas e por todo canto daquela humilde bodega, mas pedia que não assinassem, para que no futuro pudesse ler e aprender livremente sobre aquela ideia, desvinculada do autor.

Recebia gente de todo tipo e quando digo todo tipo, é todo tipo mesmo. Atendia a todos com a mesma prontidão e gentileza porque gostava muito do seu trabalho. Sabia que ninguém precisava ter um bar para ser feliz, mas que era essencial que todos gostassem muito de suas ocupações, pois se ocupariam delas por muito tempo em suas vidas e as vidas deviam ser mais felizes do que infelizes.

Ele entendia que muitos dos problemas humanos vinham do fato de que as pessoas trabalhavam pensando em ganhar dinheiro para depois ver o que faziam com ele, e deixar o agora pra depois, só por causa de um papelzinho sem nenhuma poesia ou história escrita, pro Araújo era um infeliz equívoco. Araújo preferia viver para viver e sabia que seu trabalho tornaria sua vida mais agradável e completa.

Alguém um dia escreveu numa parede do bar e Araújo concordava: “Se alguém varre as ruas para viver, deve varrê-las como Michelangelo pintava, como Beethoven compunha, como Shakespeare escrevia”.

Araújo não fazia as coisas por dinheiro. Ele realmente se alegrava de ver alguém repondo suas energias com um alimento preparado por ele, ver pessoas conversando animadamente e regando suas ideias com a bebida que ele servia, sentar-se à mesa com amigos e conversar sem compromisso. Araújo gostava de plantar sua comida e produzir sua cerveja. Araújo gostava de estar com gente.

Ele aceitava as mais diversas formas de pagamento. Se alguém escrevesse uma frase que o fizesse pensar muito, já estava bem pago. Se alguém entrasse chorando e saísse sorrindo, já estava bem pago. Se alguém o fizesse sorrir num dia triste, estava bem pago. Se alguém pudesse ajudar com a arrumação da cozinha, ou servindo as mesas, cantando ou tocando um instrumento, cozinhando algo especial num dia especial, declamando poemas, contando histórias ou piadas, levando alguma muda ou semente para ser plantada, uma receita nova, uma roupa, tudo era muito bem aceito, às vezes um simples abraço valia para que ele pudesse continuar fazendo o que gostava e apreciando a vida.

Ser atendido por quem gosta de fazer o que faz, fazia toda a diferença e como a clientela do Araújo envolvia todo tipo de gente, ele passou a conhecer escritores que gostavam de escrever e ofereciam seus livros ao Araújo como forma retribuir ao seu serviço. Conhecia médicos que gostavam de ser médicos para zelar pela saúde de seus semelhantes e o ajudavam, ou a alguém de sua família ou a um cliente do bar com algum problema de saúde. Havia professores que gostavam de lecionar e ver seus alunos aprendendo a pensar. Havia advogados que gostavam de ser advogados para promover a justiça. Havia cientistas que gostavam ser questionadores, investigar os desconhecidos e descobrir soluções. Havia filósofos que adoravam o fato de a vida ser um mistério a ser desvendado. Havia religiosos abnegados e caridosos que davam suas vidas para trazer mais conforto e paz a outros seres humanos. Para essas pessoas e para o Araújo, suas ocupações, por si só, já eram mais valiosas que qualquer salário que pudessem render.

Ele fazia amizade com pessoas de muitos lugares e ocasionalmente algum amigo se oferecia para tomar conta do bar por uma semana, um mês, para que o Araújo pudesse viajar, conhecer o mundo e visitar amigos distantes na casa dos quais se hospedava.

Mas o mundo não era o Bar do Araújo. Araújo precisava de algum dinheiro para pagar impostos ao governo e não ter suas portas fechadas pelas autoridades competentes.

Araújo achava estranho ter que pagar imposto para o governo, porque para o Araújo, o próprio governo era imposto, não precisava. Ele achava errado ensinar para crianças que uma sociedade onde os seres humanos pudessem ter autonomia sobre suas escolhas e conviver em equilíbrio era uma utopia, mas ter um ser humano sozinho dizendo o que muitos outros deviam fazer e podiam receber era o que estava certo.

Havia uma frase logo na entrada do bar que parecia ser de alguém que concordava com o Araújo, pois o Araújo concordava com a frase: “Anarquista é, por definição, aquele que não quer ser oprimido, nem deseja ser opressor; é aquele que deseja o máximo bem-estar, a máxima liberdade, o máximo desenvolvimento possível para todos os seres humanos”.

A igreja à direita do bar, que não precisava dar dinheiro ao governo, pregava um tipo de liberdade na qual cada fiel, que era um filho de Deus e merecia prosperar. A igreja à direita atrelava a definição de prosperidade ao enriquecimento econômico, ao acúmulo de bens e à propriedade privada.

Araújo, que já havia encontrado muita gente triste em sua vida, acreditava que o indivíduo que “prosperasse” baseando seu sucesso no acúmulo de coisas, estava tirando coisas de outro, tirando coisas do planeta, estimulava a competição por bens esgotáveis, acabava por valorizar mais os bens produzidos do que a vida de quem os produziu, tirava a dignidade de seres humanos que nasciam acreditando que viver era produzir coisas para alguém acumular e tornava a sociedade corrupta e prostituída, capaz de fazer qualquer coisa por dinheiro.

Isso lembrava uma frase deixada numa das mesas: “Não se mede o valor de um homem pelas suas roupas ou pelos bens que possui, o verdadeiro valor do homem é o seu caráter, suas ideias e a nobreza dos seus ideais”.

Enriquecer criando abismos sociais, à custa do trabalho de quem vive em condições sub-humanas, fazia a pessoa viver iludida e morrer infeliz, no auge daquela inquietude torturante, carente de sentido e isso não parecia próspero ao Araújo.

A igreja à esquerda do bar também não precisava pagar impostos ao governo e pregava que todos os seus fiéis fossem tratados da mesma forma, pois todos eram filhos de Deus e mereciam o mesmo respeito e os mesmos benefícios, para que prosperassem juntos.

Araújo apreciava essa visão, pois não dependia de se explorar uma parte para que a outra se beneficiasse e sim da distribuição justa de recursos escassos. Mas na prática, as pessoas não precisavam todas das mesmas coisas. As carências eram diferentes e individuais, assim como a noção de prosperidade. Não funcionava que alguém decidisse o que era melhor para todos, pois a este caberia um poder cruel, um poder que também iludia, corrompia e fazia aflorar um ser humano vaidoso, oportunista e manipulador.

No mundo fora do bar, ambas as igrejas foram abertas e eram administradas por pessoas que tinham uma ocupação: ser pastor.

Cada igreja cultuava um Deus com determinadas características e dizia que este era o Deus de todas as pessoas. O pastor garantia ter sido escolhido por Deus para transmitir seus ensinamentos e a vontade divina para as pessoas da Terra. Ele arrebanhava fiéis, como um pastor de ovelhas arrebanha ovelhas, o que garante às ovelhas a condição de se tornarem animais arrebanhados, que servem a uma nobre finalidade a qual as ovelhas desconhecem. As ovelhas e os fiéis confiavam que o pastor só queria o seu melhor, então lhe entregavam o seu melhor, sua liberdade e o controle de suas vidas.

Araújo chegou a cogitar que o governo não cobrava impostos das igrejas porque talvez fosse mais fácil controlar os eleitores que já pensassem parecido com as ovelhas.

Os pastores garantiam a prosperidade e, no caso de quem não viesse a prosperar, garantiam o reino dos céus, que era um lugar bem mais legal do que a Terra e que seria alcançado só depois da morte. Tanto a prosperidade quanto o reino dos céus estavam assegurados para pessoas que aceitassem aquele Deus e obedecessem a certas regras que o Deus, todo bondade e compaixão, havia confidenciado ao pastor. Quem não se enquadrasse naquele perfil a tempo seria desconsiderado pelo Deus daquela igreja, que reservava para estes, depois da morte, um lugarzinho pior do que o reino dos céus e pior do que a Terra, chamado inferno, que era inclusive administrado por um desafeto do Deus.

O Deus da igreja da direita, segundo seu pastor, passou a se mostrar cada vez mais seletivo quanto a quem poderia desfrutar do reino dos céus e em contrapartida, aumentava o leque de predicados e atitudes que levariam o vivente, depois de morto, para o inferno. Passou a gostar mais de quem frequentasse os cultos com roupas elegantes. Passou a dar especial atenção e uma mãozinha extra pra puxar ao reino dos céus, àqueles que contribuíam com um dízimo maior. Passou a impedir a entrada de pessoas mal vestidas e diferentes do padrão que Deus impunha. Olhava de soslaio para as pessoas negras que entrassem em sua igreja, pois em regra as pessoas pretas daquela região eram recentemente libertas da escravidão e pouco podiam contribuir com o dinheiro que Deus gostava de receber, mas se o preto fosse rico, abria-se uma exceção.

Alguns fiéis mais antigos deixaram de frequentar o culto da igreja à direita porque seus suados dízimo e vestuário os deixavam constrangidos perante a nova preferência elitista de Deus. O perfil dos fiéis da igreja à direita foi se tornado cada vez mais rico e inflexível com os pobres, os pretos, os homossexuais, mães solteiras, e marginais, porque àquela altura Deus já instruíra ao pastor da igreja à direita que a função dele e de suas ovelhas na Terra era correr atrás de dinheiro e varrer do planeta aquele tipo de câncer.

Araújo não entendia bem porque o Deus da direita queria tanto que as pessoas fossem castigadas, humilhadas, desrespeitadas e sofressem tanto pelas mãos de seus fiéis aqui na Terra, já que iriam mesmo pro inferno depois.

O pastor da igreja à esquerda passou a receber e proteger os fiéis dissidentes da igreja à direita e garantir que o Deus de sua igreja não fazia diferença entre as pessoas. O pastor passou a ser muito querido e influente entre seus fiéis, mas era difícil explicar porque, apesar de aceitarem seu Deus, alguns fiéis, como pode acontecer com todo ser humano, sofriam, eram assaltados, morriam de doenças terríveis, perdiam seus empregos e seus entes queridos. O pastor percebeu que não dava para garantir toda aquela prosperidade para todo mundo, mas não queria perder o amor de seus fiéis, o poder sobre suas decisões e nem o dízimo que se habituara a receber e que dava a chance de que ao menos ele prosperasse, então passou a fazer discursos cada vez mais eloquentes em que questionava a fé daqueles fiéis que por um motivo ou outro se davam mal.

Os pastores eram seres humanos bastante carismáticos e isso atraía ovelhas para seu rebanho. Sentir-se capaz de conduzir o destino das pessoas e saber se beneficiar disso fazia vislumbrar um poder muito tentador para os pastores, um poder ilimitado, a prosperidade em seu grau mais extremo.

Mas Araújo já vivera muito tempo e observara muitos detentores desse tipo de poder morrendo arrependidos da vida que levaram. Para ele tal poder era a ilusão em seu grau mais lesivo. Araújo há tempos trocara a vontade de dominar e influenciar os outros, pela vontade de ter mais controle sobre si próprio.

Buscando não perder fiéis para igreja do outro lado, os pastores passaram a dividir o tempo usado para pregar a palavra de Deus, com acusações e ofensas contra a igreja vizinha. Em pouco tempo os cultos serviam mais para dizer que os outros estavam errados e que combatendo os outros é que se chegava ao reino dos céus.

Criaram-se então legiões de fiéis cheios da certeza e ódio. Os da direita não eram capazes de ver os da esquerda como seus semelhantes humanos, mas como aberrações satânicas, estúpidas e inferiores. Os da esquerda tinham total convicção de que os da direita não prestavam e não mereciam dividir o mesmo mundo com eles.

Isso fazia Araújo se lembrar de uma frase que alguém havia escrito num canto de parede perto do balcão: “Uma crença muito forte demonstra apenas sua força de acreditar, não a verdade daquilo em que acredita”.

Araújo via muita gente tendo muitas certezas sobre verdades muito opostas e preferia não tomar partido de nenhum dos lados, não por se posicionar em cima do muro, mas por se julgar no direito pensar diferente de ambas as igrejas. Araújo respeitava as pessoas e os pensamentos diferentes e não ficava aflito por mudar os outros para que ficassem parecidos com ele, mas morreria pelo seu direito de pensar e se expressar.

Ele não via sentido em viver insatisfeito com a vida, queixando-se de atitudes alheias, dizendo que “esse mundo está perdido”, pelo simples fato de não concordar com o modo como os outros conduzem suas vidas. Tornar desagradável e menos nobre a experiência de viver, apenas porque alguém faz coisas que ele não faria, parecia ao Araújo o pior dos desperdícios.

Ele sabia que havia muitas outras igrejas, algumas mais tolerantes e menos preocupadas em apontar defeitos. Ele sabia que cada igreja defendia valores e princípios que se adequavam melhor ao perfil de um ou outro tipo de fiel. Sabia também que muitas pessoas buscavam respostas além das que as religiões podiam dar e achava justo todo tipo de questionamento, porque considerava que a vida era uma dádiva cheia de mistérios e ter dúvidas era mais natural e salutar do que ter certezas.

Claro que os dois pastores rivalizavam entre si, a fim de não perder fiéis um para o outro, mas ambos passaram a se preocupar com as ideias subversivas do Araújo, porque uma ovelha domesticada pode mudar de pastor quantas vezes for preciso e nada mudará em sua índole, mas a ovelha que conhece a liberdade corre o risco de nunca mais se prestar à servidão, de optar por seguir seu próprio caminho, observar melhor os ciclos naturais, aprender com erros e acertos, avaliar as consequências de suas decisões, se tornar mais equilibrada e considerar menos relevantes as decisões tomadas por medo, por coação, por promessas vazias e pelo comportamento de rebanho.

Uma ovelha assim jamais seguiria um pastor e jamais pagaria o dízimo, então tudo que acontecia no Bar do Araújo passou a ser considerado pecaminoso e satânico por ambas as igrejas.

Os pastores não aceitavam que alguém optasse por buscar alento na prosa doce e na água ardente servidas no Bar do Araújo ao invés de procurar no discurso de medo e na água ungida que serviam nas igrejas.

Sugerir respostas diferentes das que estavam escritas em um livro sagrado passou a ser garantia de inferno instantâneo. Aceitar as diferenças, as diversidades sexual e religiosa, as artes mundanas, o amor acima de todas as coisas e lutar pela liberdade, era como morder a isca do próprio satanás e tudo isso deveria ser combatido fervorosamente.

Araújo já vivera momentos parecidos com aquele, quando padres (que são como os pastores, mas de outra igreja) tentaram acabar com as bruxas, mas as mulheres livres, independentes, apaixonadas e inteligentes (que eram as bruxas), continuaram existindo. Outros tentaram acabar com os judeus, mas eles continuam existindo. Tentaram acabar com os negros, mas eles continuam existindo. Tentaram acabar com os muçulmanos, índios, nordestinos e também não conseguiram. Os diferentes continuavam existindo.

Mesmo assim, o Bar do Araújo passou a ser perseguido, difamado e atacado por suas duas vizinhas de lado. As pessoas doutrinadas a odiar o Araújo não se preocupavam se tinha boas intenções, se ele tinha sentimentos, se tinha esposa, mãe, pai ou filhos pequenos. Odiavam a tudo isso e bem odiado mesmo!

Mas Araújo conhecia fiéis de boa índole, tanto na igreja à direita quanto na da esquerda e isso era o lado bom de uma situação com cara de ruim. Apesar de tudo, ele era capaz de ver maravilhas num mundo que tinha problemas. As maravilhas estavam pra todo lado e os problemas vinham das intolerâncias, por isso ele não acreditava mais quando diziam que determinado grupo precisava ser dizimado. Ele sempre enxergava os interesses escusos e a ignorância andando de mãos dadas.

Ele não acreditava que um Deus pudesse realmente querer uma violência dessas, pois sempre lia em suas paredes ideias lindas e inteligentes escritas por pobres, como “Amai-vos uns aos outros” e “Não julgueis para não serdes julgados”. Por pretos, como “A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo” e “Sonho com o dia em que todos levantar-se-ão e compreenderão que foram feitos para viverem como irmãos”. Por homossexuais, como “Nunca imites ninguém. Que a tua produção seja como um novo fenômeno da natureza” ou “Quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu”. Então Araújo não via razões para considerar menos a essas pessoas.

Ele entendia que a liberdade ameaçava estruturas muito antigas, que dependiam de pessoas domesticadas e que por isso era perseguido e hostilizado, mas confiava mais em sua consciência do que no julgamento de pessoas sabidamente intolerantes e sua consciência dizia que ele não era mau por pensar diferente dos pastores.

Como a violência nascia da intolerância, Araújo pensava que a vida doeria menos se as pessoas se esforçassem mais na tentativa de tolerar. Da tolerância poderia, com alguma fé, nascer o respeito, do respeito, a admiração, da admiração, o amor. Por trás de todas as diferenças e das partes que pudessem parecer menos admiráveis, sempre havia uma pessoa amável pra se amar, se querer bem, desejar sua evolução, sua liberdade e sua felicidade.

Então, apesar de ser minoria, de algumas vidraças quebradas, dos xingamentos, de ser vítima de ódio e de constrangimento, Araújo continuou seu trabalho com o mesmo prazer de sempre, porque não sabia odiar e acreditava que algum dia a humanidade deixaria para trás alguns erros insistentemente repetidos.

O bardo Araújo resiste até hoje e tem aberto franquias nas mentes livres, esperançosas e sonhadoras.


Texto originalmente publicado em junho de 2015, em Carta Campinas.

O E.T.

O-ET

Por Luis Fernando Praga

Seu nome era impossível de se expressar com palavras humanas, então abriu uma página do catálogo telefônico e escolheu Plínio.

Enviado extraterrestre de uma espécie evoluída, Plínio recebeu a gloriosa missão de dominar a Terra.

Preferiu o Brasil como base porque, visto de cima, parecia um lugar bonito, com um povo musical, alegre, sambudo e acolhedor.

Plínio abanou o rabinho de sua orelha central e assim metamorfoseou-se em humano, deixando pra trás definitivamente a sua forma alienígena e assumindo os fortes traços de um brasileiro bem miscigenado.

Como espécime superior, Plínio não via a dominação pela força como uma opção, então procurou começar de baixo e galgar, passo a passo, as etapas terráqueo brasileiras de se atingir o poder. Precisava entrar pra política.

Instalou-se num bairro popular de uma grande cidade e vestiu-se com roupas adequadamente simples a fim de passar desapercebido na multidão.

Conseguiu um emprego de motoboy na associação de moradores do bairro e daí pra frente, devido ao seu alto patamar evolutivo, grande poder de persuasão e inteligência sobre humana, conseguiu promoções consecutivas e uma série de melhorias para o bairro. Em semanas era o presidente daquela associação e representante da comunidade junto ao prefeito.

Sua performance superava as expectativas, até que foi abordado por um comando policial na saída de uma reunião na prefeitura. Suspeitaram daquele homem com roupas humildes e traços mestiços correndo pra moto com uma pasta de couro nas mãos. Mandaram-no parar com as mãos na cabeça, mas Plínio, ingênuo, dirigiu-se aos policiais para saber se precisavam de alguma coisa. Foi alvejado na cabeça e morreu. A comunidade sofreu pela perda daquele ilustre representante, mas ficou tudo por isso mesmo.

Mas E.Ts. dessa variedade não morrem assim tão fácil.

Plínio, de um plano superior, estudou os motivos históricos envolvidos naquele fracasso e entendeu que teria sido mais prudente ter se apresentado numa forma menos suscetível a esse tipo de injustiça social.

Voltou na pele de uma jovem que a lista telefônica sugeriu que se chamasse Arlete.

Arlete se instalou num bairro de classe média e poupou etapas. Passou em um concurso público sem estudar, valendo-se de sua condição superior. Conseguiu um bom salário e usava roupas mais dignas da posição que almejava alcançar.

Criou uma ONG de caráter assistencial e educativo onde dava formação profissional, noções da ética, cidadania e sustentabilidade a pessoas em situação de rua.

Demonstrou dinamismo, carisma e já disparava na liderança das pesquisas de intenção de voto para prefeito aquele ano.

Deixou claro que todos tinham direito à dignidade. Que os recursos disponíveis deveriam ser entendidos de uma forma global. Que definir quem teria acesso a esses recursos com base no poder aquisitivo era lutar contra a Natureza e que sempre que se luta contra a Natureza se perde. Que jamais haveria nenhum tipo de justiça no mundo e nem naquela cidade, enquanto houvesse uns miseráveis e outros muito abastados. Que era necessário, urgentemente, garantir a todos os direitos básicos dos quais apenas poucos desfrutavam, como prazer, conhecimento, saúde, segurança, água e comida e isso implicava no uso racional de recursos escassos. Privilégios não podiam ser permitidos. O excesso de quem tinha muito precisava ser repartido com quem tinha pouco a fim de gerar equilíbrio e uma vida melhor para todos.

Mexeu com gente poderosa, fez inimigos, foi chamada de vadia, puta, quadrilheira, comunista e mandaram-na para Cuba. Ela achou engraçado mas não foi.

A grande mídia, que fazia parte da parte que tem em excesso, passou a lançar acusações, difamar sua vida pessoal e pessoas influenciáveis pela grande mídia passaram a odiá-la.

Certa noite saiu da sede da ONG acompanhada de um amigo morador de rua e foi abordada por um carro de luxo ocupado por três rapazes fortes, brancos, saudáveis, cristãos, bem vestidos e educados. Eles a assediaram e o homem que a acompanhava se interpôs. Os rapazes desceram e desceram o cacete no mendigo; jogaram-no na mala do carro e a forçaram a entrar no veículo, onde a estupraram, mataram e largaram o corpo num matagal ao lado do mendigo desacordado, que acordou na cadeia em que vive injustamente até hoje.

Sem mais poder contar com Arlete para seus planos de dominar o mundo, ele voltou às planilhas, avaliou onde havia errado, consultou o catálogo telefônico e voltou Aparício.

Dr. Aparício era um homem branco, forte, saudável, de olhos claros, cristão, bem vestido e educado. Fixou-se num bairro nobre e forjou documentos que lhe davam títulos de doutor em ciências políticas, econômicas e sociais.

Tinha um discurso que agradava aos poderosos e convencia às massas, e foi eleito presidente do Brasil.

Tinha poder, mas era pouco pra quem desejava dominar o mundo. Percebeu que apesar de ser presidente não podia fazer tudo o que queria. Agradando aos poderosos e aliando-se a eles como fizera, acabara por reduzir sua capacidade de atuação sobre a sociedade.

Se colocasse em prática sua meta de redistribuir recursos de forma justa desagradaria a grandes corporações, instituições e nações muito poderosas que agiam com uma truculência disfarçada, muito mais bem organizada e ainda mais descompromissada com a vida humana do que os policiais que mataram Plínio ou os rapazes que mataram Arlete. Seria morto mais uma vez.

Constatou que havia forças multilaterais e interdependentes se digladiando pelo domínio do mundo que não hesitavam em massacrar pessoas, espoliar o planeta, difamar adversários, criar dogmas escravizantes, leis proibitivas e inventar inimigos, tudo a fim de manter esse estranho equilíbrio alimentado por vidas humanas.

Dr. Aparício via de seu gabinete uma sociedade machista e viciada em consumo.

Via uma série de Plínios inocentes sendo perseguidos e assassinados por policiais que seguiam ordens de gente que desviava dinheiro público, manipulava a imprensa, chantageava, mentia, corrompia e mandava matar.

Dr. Aparício viu muitas Arletes inocentes sendo ameaçadas, discriminadas, oprimidas, espancadas dentro e fora de suas casas.

O vício pelo consumo consumia recursos não renováveis de forma cancerosa e cegava as pessoas de enxergarem as cores da vida. As pessoas não conseguiam ver o Plínio e sim suas roupas surradas, de modo que um paletó e uma calça de linho teriam evitado sua morte. As pessoas não viam que o assassinato de Plínio não era culpa de sua falta de paletó, mas da incapacidade de se enxergar a vida de um irmão que recheava aquelas roupas.

A sociedade marginalizava, estuprava, assassinava e transformava de vítimas em rés, centenas de Arletes diariamente. Dr. Aparício sabia que a culpa nunca fora de nenhuma Arlete, mas da cegueira de homens e mulheres machistas. De não se enxergar a vida humana além do rótulo preconceituoso e ignorante imposto pela venda negra do machismo.

Dr. Aparício viu seu povo convenientemente dividido em blocos rivais, cada um se considerando infinitamente superior ao outro, sem ver que ambos eram controlados pela inércia das engrenagens de um sistema obsoleto criado muito tempo atrás por gente como eles e que precisava ser radicalmente transformado.

Ele entendeu que se todo aquele povo tomasse consciência do que acontecia e questionasse profundamente suas vidas, não trocariam seu tempo pelas migalhas que seus senhores jogavam no chão e pelas quais competiam como bichos, sem hesitar em matar.

O Dr. Aparício sabia que nenhum ser humano seria capaz de chegar aonde ele chegara sem aceitar as regras daquele jogo em que o objetivo era o dinheiro e o poder. Todos, em algum momento do trajeto, ou pela eleição, ou pela governabilidade, ou pela manutenção de suas regalias, faziam vistas grossas para as mortes de muitos Plínios, Arletes e anônimos. Gente que se tivesse o dinheiro com que um político paga um bom jantar, poderia ter tido um atendimento de saúde mais digno e não ter morrido.

As pessoas não precisavam de um bom governante. Precisavam de, numa profunda incursão interna, entender onde foi que perderam o governo de suas próprias vidas. Precisavam entender que não odiavam por vontade própria, mas por uma conjunção de fatores externos que interferiam na formação de suas convicções e crenças. Precisavam entender que antes de ser uma sociedade perfeita criada por indivíduos, eram indivíduos acomodados com a sociedade falha que haviam criado.

Dr. Aparício, apesar da pretensa superioridade de sua raça, aprendeu coisas importantes com a espécie humana. Havia amor, havia alegria, havia esperança e havia uma força inexplorada dentro de cada criatura, e isso não o tornava superior a ninguém. Havia ilusão, ignorância, inversão de valores, ganância e ódio, mas tudo isso podia ser esclarecido com o amor, a alegria de viver, a esperança e aquela força interior cujo potencial ele apenas supunha.

Ele entendeu que enquanto as pessoas trocassem suas forças de trabalho por dinheiro, o principal valor, o da vida, estaria obscurecido. Enquanto houvesse o capitalismo que induzia ao vício do consumo, o valor das vidas seria subestimado, haveria corrupção e escravizados.

Enquanto houvesse dominação, pelo estado ou pelo patrão, também haveria depreciação da vida humana, corrupção, vaidade e privação de liberdades, e enquanto a liberdade não fosse plena, o indivíduo sentiria medo de se aprofundar no tão importante conhecimento de si próprio, de encontrar seu potencial e sua vocação na vida.

Dr. Aparício entendeu que dominar o mundo não era uma atitude digna de uma estirpe superior. Era o mesmo tipo de ilusão da qual os humanos eram vítimas, então mudou seus planos de forma radical, pois aquela inércia exigia uma guinada radical.

Entrou no ar em horário nobre, e num pronunciamento à nação contou como ele acreditava que a vida deveria ser vista dali pra frente e como era equivocada a forma como ela vinha sendo vista até ali.

Reiterou os seus motivos e estabeleceu as seguintes mudanças numa medida provisória:

*Abriu mão de seu salário, regalias e imunidades. Estava certo de que não precisaria deles para viver.

*Da mesma forma, todos os representantes dos três poderes abririam mão de tais privilégios e apenas continuariam em seus cargos se tivessem algo a oferecer à nação de forma despretensiosa.

*Proibiu o uso de agrotóxicos em todas as lavouras do país. Seríamos capazes de viver sem comida envenenada e sem alimentar a indústria do veneno.

*Proibiu a importação de produtos que fossem fruto de mão de obra escrava. Viveríamos melhor sem explorar gente inocente e seríamos mais felizes vendo essa gente experimentar a liberdade, feliz e desfrutando da vida, com os mesmo direitos de todos os seres humanos.

*Proibiu a importação de produtos de países que fomentassem a guerra e que lucrassem com a indústria bélica. Conseguiríamos sobreviver num mundo sem armas e bombas atômicas, já que sobrevivemos até hoje num mundo com elas.

Depois de anunciar outras medidas que nossa sociedade considera extremamente radicais, despediu-se da nação sugerindo mais tolerância, mais abraços, menos medos e uma busca incessante pela liberdade e auto conhecimento. Pessoas livres eram sem dúvida mais confiáveis do que as aprisionadas.

Dr. Aparício foi encontrado morto em sua cama com um tiro na cabeça e na manhã seguinte a imprensa noticiou o “suicídio”.

O presidente da câmara assumiu e disse ao povo que infelizmente o Dr. Aparício enlouquecera, que com fé em Deus tudo seria colocado novamente nos trilhos e que ninguém parasse de trabalhar.

Nenhuma das ações previstas na medida provisória foi colocada em prática e a vida no país continuou muito, muito bem, como era antes, exceto por algumas poucas pessoas que ousaram ouvir o doido do Dr. Aparício.

Pipocaram boicotes aqui e ali, movimentos de insubordinação e agrupamentos humanos crentes na possibilidade da evolução, de uma coexistência pacifica e no uso sustentável da terra.

Nosso E.T. instalou-se, por fim, numa dessas comunidades, pois se afeiçoou muito à espécie humana, aos abraços, ao planeta e ao Brasil. Aprendeu a amar a terra e extrair dela o seu sustento. Aprendeu a conviver com as diferenças entre ele e nós e a chorar de alegria e esperança.

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Texto originalmente publicado em outubro de 2015, em Carta Campinas.