Leonor Guerra: “o educador é quase um neurocirurgião”

Professora da UFMG e coordenadora do projeto NeuroEduca fala sobre a importância das emoções na aprendizagem

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A aquisição de novas habilidades, conhecimentos e competências é resultado de processos que acontecem no cérebro. A memória, atenção, percepção e até mesmo emoção são funções que estão em jogo na hora de aprender um novo conteúdo. Se o cérebro é o órgão responsável pela aprendizagem, compreender melhor o seu funcionamento pode ser útil para o dia a dia do professor. “O educador é quase um neurocirurgião que, sem abrir o cérebro, consegue mudar conexões por meio dos órgãos do sentido”, compara a professora Leonor Guerra, do departamento de morfologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

A base da aprendizagem está na reorganização dos neurônios. A professora da UFMG afirma que nosso cérebro se desenvolveu ao longo da evolução para garantir a sobrevivência, e não necessariamente para ter sucesso na escola. “Eu só vou aprender novas coisas se aquilo fizer diferença para minha possibilidade de adaptação”, explica.

Quando um aluno compreende que o seu mecanismo de sobrevivência na escola é conseguir nota, a especialista afirma que ele começa a criar uma série de estratégias para atingir o seu objetivo, ainda que isso não resulte em aprendizagem, como a famosa tática de estudar às vésperas da prova. “Se a avaliação permite que ele seja bem-sucedido com essa estratégia, ele vai permanecer nela.”

Para uma criança ou adolescente adquirir novas competências, Leonor defende que o conteúdo deve ser significativo e relevante. Defende ainda que uma das maiores tarefas do educador é encantar o aluno com o conteúdo. ‘‘A emoção é o carro-chefe da aprendizagem. O professor tem que saber que a emoção que ele desencadeia no aluno, positiva ou negativa, vai ter uma efeito”, aponta a professora da UFMG, que também é coordenadora do projeto NeuroEduca, iniciativa de extensão da universidade voltada para divulgação de informações para orientar profissionais da área de educação sobre conceitos básicos de neurociência.

Durante as formações com educadores, que acontecem em de cursos de atualização ou palestras de sensibilização, a médica e especialista em neuropsicologia conta que muitos professores ainda apresentam dificuldades ao estabelecer relações entre pesquisas da neurociência e a prática de sala de aula. Segundo ela, isso pode ser um resultado da falta de contato com esse conteúdo no período da formação inicial.

De acordo com Leonor, a interação com essa área de conhecimento confere maior autonomia e criatividade para o professor. “Ele fica menos atrelado à receitas e consegue flexibilizar melhor a sua estratégia pedagógica, atendendo especificidades do aluno em sala de aula”, aponta.

Embora seja útil conhecer como o sistema nervoso processa informações e estímulos, a professora ainda adverte: “não quer dizer que ele [o educador] vai conseguir resolver todos os problemas da aprendizagem, mas ele vai entender porque uma aula tem um resultado melhor do que outra, ou porque alguns alunos são melhor sucedidos do que outros.”


Matéria originalmente publicada no site Porvir, em setembro de 2015.

 

Educação alimentar e nutricional: responsabilidade de quem?

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Por Maria Cristina Faber Boog¹

Em casa recebemos dois jornais por assinatura. Me surpreendeu o fato de que, em um espaço de apenas três dias, assuntos relativos à alimentação vieram ocupar espaços significativos desses jornais. Dois deles versavam sobre a constatação através de pesquisas do fato de que bebês já tomam refrigerante. O outro trazia uma análise do trabalho de uma jornalista que se dedica a investigar a fidedignidade de informações contidas nos rótulos de alimentos e denunciar informações enganosas. Ambas são contribuições importantes, por um lado de pesquisadores, por outro de jornalistas. Cada qual em seu papel. É importante que a informação científica não fique restrita aos periódicos científicos, mas que ela venha ao público que, afinal, mantém as Universidades Públicas onde, de fato, se faz pesquisa no Brasil. Por outro, é papel do jornalista desconfiar de tudo, averiguar e informar. Se os rótulos passam uma ideia distorcida sobre os produtos, a sociedade precisa ser informada e alertada a respeito disso, os órgãos de defesa do consumidor devem ser acionados e a legislação precisa ser aprimorada. Até aqui nada novo, tudo em seu devido lugar. Evidencia-se um crescente interesse pelos assuntos relativos à alimentação, o que é bom, pois trata-se de um tema central para a saúde.

Os atos de informar, educar e orientar compartilham algumas intenções, porém são ações com objetivos específicos e diferentes entre si. Para educar é preciso orientar, mas educar é mais do que orientar. Para orientar é preciso informar, mas só informar também não basta. Pressupõe-se, muitas vezes, que a capacitação do educador possa acontecer pela leitura de guias e documentos, pelo uso de materiais didáticos, vídeos, jogos e um sem número de objetos “didaticamente” desenvolvidos para esse fim. Isso me faz lembrar de três grandes mestres que tive: Rubem Alves, Paulo Freire e João Francisco Regis de Morais. Deste último lembro sempre a frase que muito me marcou: “Educação é encontro humano”. Rubem Alves falou do “espaço invisível e denso, que se estabelece a dois. Espaço artesanal.”, no qual a palavra, o diálogo (marca da educação freireana), o olho no olho fazem toda a diferença. Educação é algo que só acontece entre pessoas, espaço artesanal.

“Educação é algo que só acontece entre pessoas, espaço artesanal.”

A reflexão que desejo compartilhar aqui é sobre a maneira como a Educação Alimentar e Nutricional vem sendo vista e desenvolvida em certos contextos. Na lei que rege a atuação do nutricionista, a Educação Nutricional é considerada uma atividade privativa do nutricionista. Nos documentos oficiais, especificamente no “Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas” ela é definida como “um campo de conhecimentos e de prática contínua e permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional…”. Até o momento não vi ninguém questionar esse paradoxo. A lei é arcaica ou o marco teórico é que pressupõe uma situação à margem daquilo que está estabelecido na legislação? O trabalho de pesquisadores e de jornalistas com os quais iniciei esta reflexão são exemplos de informações relevantes. Mas, e a educação? A tal da educação alimentar e nutricional. Quem faz? Como faz?

A inclusão do adjetivo “alimentar” justaposto ao “nutricional” na denominação do campo de conhecimento e de prática “educação alimentar e nutricional”, levou à abertura de um canal para que outros profissionais viessem a trabalhar nesse campo, uma vez que a prática alimentar pode ser analisada sob os mais diferentes aspectos. Isso foi bem-vindo, pois a nutrição está inserida neste contexto maior da alimentação humana. Porém, o aspecto nutricional é da competência de quem estudou nutrição. Criado o impasse: a quem compete então a educação alimentar e nutricional? Com que possibilidades e com quais limites? Ao longo do processo de construção da Política Nacional de Alimentação e Nutrição e dos documentos correlatos a ela, percebi colegas aderindo às ideias com um certo entusiasmo “politicamente correto”, mas pouco crítico e pouco realista. Em algumas oportunidades cheguei a fazer esse alerta: não é porque uma política tão necessária e ansiada pela categoria está sendo gestada, que devamos concordar com tudo o que está ali colocado.

Em minhas atividades de consultora, já venho me deparando com preocupações de profissionais responsáveis por programas de educação alimentar e nutricional, relativas à necessidade de criar meios para garantir que estas atividades se voltem realmente à promoção da alimentação saudável, culturalmente referenciada, como preconizam os documentos. Ora, na medida em que o processo sai das mãos dos técnicos, a observância de princípios básicos de nutrição pode ir por água abaixo. E tem acontecido.

Também não é verdade que a educação alimentar e nutricional se fará apenas pelos meios de divulgação para o grande público, através das mídias sociais, de materiais impressos, joguinhos, etc. Mais do que nunca as ações profissionais nos âmbitos comunitários, de grupo e individuais, em ambulatórios e consultórios, também são necessários. Quando maior o nível de informação, mais frequentes e complexos são os questionamentos.

As ações desenvolvidas pelos nutricionistas no campo da educação alimentar e nutricional estão se diversificando e sendo sistematizadas por meio de métodos e nomenclaturas diversas. Mas não nos esqueçamos de que lidar com o comportamento humano é sempre um ato educativo. Mais do que nunca, compreender profundamente a natureza do processo educativo é fundamental. É necessário estar ciente de que a educação junto com a nutrição está presente em todas as ações profissionais nas quais se busca, enfim, melhorar a vida das pessoas melhorando a sua relação com a alimentação. As informações de caráter epidemiológico, as tendências no consumo de alimentos e as informações disponíveis sobre a evolução do estado nutricional são também fundamentais para a seleção de ações e conteúdos em programas educativos. Não é trabalho para leigos. As bases teóricas da Educação Alimentar e Nutricional estão neste tripé: ciência da nutrição, ciências humanas (pedagogia, psicologia, psicanálise, sociologia, antropologia) e epidemiologia. É por meio desse olhar cuidadoso e multidisciplinar que as ações de educação em nutrição devem ser concebidas e desenvolvidas. Por quem? Com que formação? Com quais conhecimentos? Com que objetivos? Com quais critérios técnicos e éticos?


¹Professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas. Autora do livro “Educação em Nutrição – integrando experiências“. O texto foi reproduzido do site Educação em Nutrição: originalmente publicado em sua seção Opinião Crítica, em 31/08/2015.

Suzana Herculano-Houzel: o que faz do cérebro tão especial?

Suzana Herculano-Houzel, professora da UFRJ, uma entre milhares de cientistas que est„o deixando de receber recursos para pesquisa por causa da crise econÙmica. Ela tem feito muitas crÌticas ao governo, dizendo que a ciÍncia brasileira est· ìfalidaî. Ela

O cérebro humano é  curiosamente grande em relação ao tamanho de nosso corpo, consome uma quantidade imensa de energia para o seu peso e tem o seu córtex bizarramente denso. Assista à palestra (com legendas) da neurocientista Suzana Herculano-Houzel para o TED, ministrada em junho de 2013.

 

Ana Júlia e a palavra encarnada

O movimento de ocupação da escola pública tornou-se a principal resistência ao projeto não eleito e pode ser a pedra no caminho do PSDB em 2018.

Por Eliane Brum, via El País

Ana Júlia Ribeiro resgatou a palavra num país em que as palavras deixaram de dizer. E que força tem a palavra quando é palavra. O vídeo que viralizou levando o discurso de Ana Júlia para o mundo mostra que a palavra dela circula pelo corpo. É difícil estar ali, é penoso arriscar a voz. Ela treme, ela quase chora, Ana Júlia se parte para manter a palavra inteira. A câmera às vezes sai dela e mostra a reação dos deputados do Paraná. Alguns deles visivelmente não sabem que face botar na cara. Tentam algumas opções, como numa roleta de máscaras, mas parece que as feições giram em falso. Deparam-se aflitos com a súbita dificuldade de encontrar um rosto. A palavra de Ana Júlia arruinou, por pelo menos um momento, a narrativa que começava a se impor: a da criminalização dos estudantes e de seu movimento de ocupação da escola pública. Mas a disputa ainda é esta. E tudo indica que se tornará cada vez mais pesada: são os estudantes que estão no caminho do projeto de poder do governo de Michel Temer e das forças que o apoiam. E são também eles que podem atrapalhar o tráfego de quem corre para 2018, em especial o PSDB de Geraldo Alckmin.

A maior parte da imprensa ignorou o movimento de estudantes que, no final da semana passada, ocupavam cerca de 800 escolas públicas do Paraná e outras centenas pelo país, incluindo universidades, em protesto contra o projeto de reforma do ensino médio do governo Michel Temer (PMDB). Projeto apresentado como Medida Provisória, o que é só mais um sinal do DNA autoritário dos atuais ocupantes do poder. Os estudantes também ocuparam as escolas em protesto contra a PEC- 241, que congela gastos públicos por 20 anos e pode reduzir o investimento em educação e saúde, áreas estratégicas para o país, com impacto direto sobre os mais pobres.

 

A potência da voz de Ana Júlia é a da palavra que tem corpo”

 

A ocupação das escolas públicas era – e é – o movimento mais importante deste momento no país – e o espaço na imprensa, quando havia, era mínimo. Até o dia em que um estudante matou outro a facadas, dentro de uma das escolas. Aí as matérias apareceram. Havia então o que dizer. Transformar um fato isolado, com suas circunstâncias particulares, em estigma de todo um movimento levado adiante por milhares de jovens é uma especialidade conhecida do não jornalismo e da política sem ética. E então veio o discurso de Ana Júlia. Não pós-verdade, mas verdade. A verdade dela, do coletivo de estudantes que ela ali representava. A potência da voz de Ana Júlia é a da palavra que tem corpo.

As reações ao discurso de Ana Júlia expressam a época histórica que encontra sua melhor crítica numa série de ficção: Black Mirror (Netflix), com suas distopias sobre a vida atravessada pelas novas tecnologias. Há pelo menos duas maneiras de esvaziar a palavra de Ana Júlia esvaziando Ana Júlia. Uma delas é ridicularizá-la. O tremor da voz, do corpo, as lágrimas viram “argumentos” para fragilizar seu discurso. É o velho truque usado contra as mulheres, usualmente reduzidas a “histéricas” ou “loucas” ou “mimimi”. O todo que constrói a voz é atacado para deixar sua palavra, o verdadeiro alvo, sem lastro. Sem corpo. Desde que seu discurso viralizou, seus 16 anos de vida estão sendo vasculhados na tentativa de encontrar qualquer episódio que possa ser torcido, para destruir sua palavra destruindo-a. Se não existir, pouco importa, fabrica-se – como se viu em vídeos e sites pela internet.

Mas há também uma outra forma de esvaziar a palavra de Ana Júlia, e esta parece inofensiva, “do bem”. É transformar Ana Júlia em “heroína” ou na “esperança de um país”. Nessa narrativa, Ana Júlia é isolada do grupo que sustenta seu discurso, seu corpo. Ela, que representava muitos, que era multidão, passa a ser conjugada no singular. Sozinha, Ana Júlia pode muito pouco.

O outro efeito dessa “celebrização” é a exigência do que Ana Júlia não pode ser – e não pode ser nem quando pode muito. Num país mastigado por uma crise que também é de palavra, não há como transferir para uma jovem de 16 anos a responsabilidade por “salvar” o Brasil, transformando-a em encarnação da “esperança”, esta que também é tão superestimada. Neste lugar simbólico, qualquer um, mesmo que tivesse 80 anos de idade, estaria condenado ao fracasso. Inflar sua palavra é também uma forma de despontencializá-la.

 

“A única proteção contra esquartejamentos na arena pública é o coletivo”

 

Ao esclarecer que seu discurso foi preparado em conjunto com o grupo de estudantes, pedir para não tirar fotos sozinha e evitar falar de sua vida pessoal, Ana Júlia parece conhecer os riscos de ser convertida em celebridade instantânea. Se esta conversão fosse completada, sua palavra viraria produto. E Ana Julia seria consumida e cuspida, como já aconteceu com tantos. Nos dias que se seguiram ao discurso na Assembleia Legislativa do Paraná, em Curitiba, foi possível testemunhar muitas mãos, vindas de várias direções, tentando arrancar lascas da palavra-corpo de Ana Júlia. A única proteção contra esquartejamentos na arena pública é o coletivo, o grupo, o juntos – o movimento.

Em um momento do seu discurso de 10 minutos e 40 segundos, Ana Júlia menciona a morte do estudante Lucas Eduardo de Araújo Mota e afirma: “Vocês estão aqui representando o Estado, e eu convido vocês a olhar a mão de vocês. A mão de vocês está suja com o sangue de Lucas. Não só do Lucas como de todos os adolescentes que são vítimas disso. O sangue do Lucas está na mão de vocês, vocês representam o Estado”.

O presidente da Assembleia, Ademar Traiano (PSDB), como um daqueles tubarões rápidos em detectar um flanco de oportunidade, acreditou que havia ali uma chance de atacar a menina e devolver o plenário ao seu ambiente natural, aquele em que peixinhos dourados não confrontam velhos carnívoros. “Aqui você não pode agredir o parlamentar…. Eu vou encerrar a sessão, eu vou cortar a palavra… (…) Não afronte deputado, aqui ninguém está com a mão manchada de sangue, não”, inflamou-se. Encerrar a sessão, “cortar a palavra”, seria mesmo uma bênção para uma parcela dos parlamentares.

Ana Júlia seguiu defendendo as palavras: “Eu peço desculpa, mas o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) nos diz que a responsabilidade pelos nossos adolescentes, pelos nossos estudantes é da sociedade, da família e do Estado”. Nem precisaria pedir desculpas. Ela estava falando em português para pessoas que deveriam ter capacidade de interpretação de discursos em língua portuguesa. O deputado entendeu muito bem que ela não se referia a mãos literalmente “sujas de sangue” ou apontava uma relação direta com a morte do estudante, mas estava, sim, chamando atenção sobre a responsabilidade constitucional dos parlamentares em sua função pública. O deputado apenas preferiu apostar na burrice – e parece que ninguém perde no Brasil atual ao apostar na burrice.

 

“Com o projeto conservador avançando, os partidos progressistas derrotados nas urnas, as esquerdas brigando entre si, sobrou para os estudantes uma responsabilidade grande demais”

 

Há um ponto, neste episódio, que é justamente a responsabilidade dos adultos. Com a escola pública, com o Brasil. A ação dos estudantes tornou-se o principal movimento de resistência ao projeto não eleito do governo Michel Temer e das forças que o apoiam. Com a oposição fragilizada, o PT quebrado, capitais importantes como São Paulo e Rio nas mãos de conservadores e as esquerdas sem projeto e brigando entre si, sobrou para os estudantes secundaristas um peso grande demais. Neste sentido, foi um pouco assustador testemunhar adultos infantilizados tratando Ana Júlia como um oráculo de 16 anos. É preciso fazer melhor do que isso tanto para apoiar os estudantes, respeitando sua autonomia, quanto para construir um projeto capaz de ecoar no país.

A escola pública foi destruída e abandonada por décadas. Também o PT fez menos do que poderia, em especial nos ensinos fundamental e médio, durante os 13 anos que permaneceu no poder. Enquanto a classe média pôde matricular seus filhos nos colégios privados, ninguém se preocupou com os filhos dos mais pobres, que não tinham educação e viviam um cotidiano de violações. A violência começa pelo salário humilhante dos professores, o abandono dos prédios e uma escola que não educa, incapaz de qualificar o desejo e ampliar os mundos de crianças e adolescentes. Tudo indica que aqueles que ali estão não têm valor para o país, relegados ao lugar simbólico de restos.

Enquanto foi este o estado das coisas, bem poucos parecem ter se preocupado para além do discurso vazio, das palavras sem corpo sobre a importância da educação, que ressurgiam a cada eleição e que culminaram com “Brasil, Pátria Educadora”, o slogan do governo deposto de Dilma Rousseff. Dizer que “educação é prioridade” se tornou um falso consenso que, em vez de palavra, virou flatulência.

 

“As escolas públicas só se tornaram um problema para as forças conservadoras quando os estudantes as ocuparam para exigir educação de qualidade”

 

Ter escolas que não educam para os mais pobres nunca foi de fato um problema para as elites do país. Estava tudo bem assim. O problema surgiu quando os estudantes das escolas públicas de São Paulo entenderam que a “reorganização escolar” imposta pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que fecharia mais de 90 colégios e remanejaria mais de 300.000 alunos, era um abuso. Ocuparam então as escolas no final de 2015. E, mais do que ocuparam, cuidaram do que ninguém cuidava – limpando, pintando e consertando – e disseram que queriam, sim, ser educados. Cuidar das escolas e reivindicar ensino de qualidade virou uma transgressão a ser punida. E a ser criminalizada.

A ideia de que as escolas podem ser ocupadas, num sentido profundo, por aqueles que dela dependem para ter oportunidades na vida, se alastrou pelo país. “De quem é a escola? A quem a escola pertence?” foi uma das primeiras perguntas de Ana Júlia aos deputados do Paraná. É uma grande pergunta, e os estudantes têm uma resposta a propor.

Movimentos de “Ocupa Escola” começam, acabam e recomeçam em diversos estados do Brasil desde o ano passado. A ocupação das escolas do Paraná coincidiu, porém, com um momento ainda mais delicado do país: um projeto não eleito no governo federal, apoiado por um Congresso corrompido, tocando com grande rapidez reformas cruciais, como a PEC-241, sem debate com a sociedade.

Quem está, de fato, no caminho deste projeto de poder, tanto quanto das ambições de algumas figuras nacionais, neste momento de oposição fragilizada ou mesmo atarantada? Os estudantes secundaristas com seu “Ocupa Escola”, uma luta que ganhou uma dimensão muito maior do que eles poderiam prever. Assim, há várias forças tentando destruir o movimento, seguindo a cartilha de sempre: criminalizando-o.

É importante perceber que, de repente, a escola, com a qual bem poucos se importavam para além do discurso vazio, virou o alvo de ataques conservadores bem organizados. “Escola Sem Partido”, o projeto-aberração que busca criminalizar o pensamento crítico dentro das escolas e, portanto, acabar com a possibilidade de qualquer processo educativo, é uma das ofensivas em curso. “Escola Sem Partido é falar pros jovens, pra sociedade, que querem formar um exército de não pensantes, um exército que ouve e baixa a cabeça”, disse Ana Júlia aos deputados do Paraná.

O “sem partido”, vale prestar muita atenção, é a malandragem do momento. Ela busca encobrir todos os partidos que estes projetos tomam – e vender uma suposta neutralidade ideológica que não têm. Sem contar a crescente criminalização dos partidos políticos, tanto como conceito quanto como atores do processo democrático, algo que merece uma atenção exclusiva em outro artigo.

Entre as tentativas de deslegitimar o movimento dos estudantes, a mais corriqueira é anunciar que os alunos são “manipulados” e “aparelhados” justamente por partidos de esquerda. Fizeram o mesmo com Ana Júlia tão logo seu discurso viralizou na internet. É triste assistir a ela e a outros estudantes terem de explicar de novo e de novo para jornalistas e mesmo para parlamentares que o movimento é “apartidário” – o que é diferente de “sem partido”.

 

“É impressionante que ainda funcione essa nova versão dos comunistas comendo criancinhas enquanto o Brasil se torna o país do mais um direito a menos por dia”

Não fosse parte da população tão estúpida, perceberia que os partidos identificados com a esquerda foram derrotadas nas urnas nestas últimas eleições e que o projeto conservador vem atropelando o país de forma acelerada, transformando o cotidiano em mais um direito a menos por dia. Lula teria ligado para Ana Júlia para dizer que estava “emocionado” com o movimento? Era Lula que precisava disso, não Ana Júlia e o movimento que representa. Se tivesse preocupado com a causa dos secundaristas mais do que com a sua sobrevivência política, Lula teria inclusive se abstido deste telefonema.

Assim, é impressionante que ainda funcione essa nova versão dos comunistas que comem criancinhas enquanto os direitos da população estão sendo engolidos, digeridos e defecados em Brasília pelas forças que, mais uma fez, refazem o pacto conservador para manter os privilégios intactos. A tática de inventar um inimigo e alimentar com ele o medo da população é tão antiga quanto a humanidade. Que ainda funcione pode ser explicado por aqui pela péssima educação pública, que pode piorar ainda mais, como alertam os estudantes.

 

“O MBL parece bem mais interessado em criminalizar os estudantes que ocupam as escolas do que em denunciar os corruptos que seguem dando as cartas em Brasília”

 

O Movimento Brasil Livre (MBL), um dos protagonistas das manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff, tem atuado pela desocupação das escolas no Paraná e se esforçado para criminalizar o movimento dos estudantes. Aqueles que levantaram a bandeira da “corrupção” nas ruas do país, enquanto tiravam fotos junto com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), depois da deposição de Dilma parecem bem pouco interessados nos corruptos que seguem em Brasília dando as cartas. Mas, em contrapartida, estão muito empenhados em tirar os estudantes do caminho. Vale a pena observar com toda atenção que partidos o MBL apoia. Neste domingo, por exemplo, ajudou a eleger o novo prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), numa eleição que teve vidros estilhaçados e até uma morte, ambos os episódios ainda mal explicados. É a primeira vez que o PSDB comandará a capital gaúcha.

Com a Lava Jato rondando José Serra e Aécio Neves, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, vai chegando cada vez mais perto de ser o candidato do partido à presidência em 2018. Saiu das eleições de 2016, onde arriscou-se e ganhou, muito mais fortalecido. Se o PSDB foi o vencedor do pleito municipal, Alckmin – ao eleger João Doria prefeito de São Paulo ainda no primeiro turno, contrariando outros setores e caciques do partido, e ampliar a presença de sua base aliada nas prefeituras de outras cidades e regiões do estado – foi o campeão. Impressionante que ainda chamem de “picolé de chuchu” um dos políticos mais complexos – e assustadores – do Brasil atual.

 

“Alckmin, o vencedor das eleições de 2016 que quer vencer em 2018, só perdeu batalhas significativas para os estudantes”

 

Alckmin se reelegeu governador no primeiro turno, em 2014, em plena crise hídrica, negando a crise hídrica. Antes, em 2013, os protestos nas ruas aumentaram depois que a polícia de Alckmin arrebentou manifestantes e também jornalistas. Mas, em pouco tempo, com a ajuda de parte da imprensa, os manifestantes foram convertidos em “vândalos”. E, mais uma vez, Alckmin se safou.

Nos últimos anos, a única tentativa de Alckmin que não colou foi a criminalização dos estudantes que ocuparam as escolas públicas de São Paulo no final de 2015. Sua polícia começou a arrebentar crianças e adolescentes nas ruas e as imagens eram chocantes demais mesmo para os mais crédulos. Alckmin, o assustador, viu sua popularidade cair. O governador perdeu aquela batalha, e perdeu para adolescentes.

Os estudantes da escola pública estão no meio do caminho do projeto de poder de muita gente inescrupulosa. Com seus corpos franzinos. Com sua voz trêmula. Tão sós num momento em que os adultos que poderiam estar ao seu lado têm dificuldade para compreender a gravidade do momento e assumir responsabilidades.