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Renato Janine Ribeiro: ética, política e os desafios da educação

Em entrevista publicada em junho de 2016, Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), discute a importância da formação intelectual do cidadão crítico para a construção de uma sociedade mais justa. O professor ocupou o posto de Ministro da Educação, entre abril e outubro de 2015.

Ana Júlia e a palavra encarnada

O movimento de ocupação da escola pública tornou-se a principal resistência ao projeto não eleito e pode ser a pedra no caminho do PSDB em 2018.

Por Eliane Brum, via El País

Ana Júlia Ribeiro resgatou a palavra num país em que as palavras deixaram de dizer. E que força tem a palavra quando é palavra. O vídeo que viralizou levando o discurso de Ana Júlia para o mundo mostra que a palavra dela circula pelo corpo. É difícil estar ali, é penoso arriscar a voz. Ela treme, ela quase chora, Ana Júlia se parte para manter a palavra inteira. A câmera às vezes sai dela e mostra a reação dos deputados do Paraná. Alguns deles visivelmente não sabem que face botar na cara. Tentam algumas opções, como numa roleta de máscaras, mas parece que as feições giram em falso. Deparam-se aflitos com a súbita dificuldade de encontrar um rosto. A palavra de Ana Júlia arruinou, por pelo menos um momento, a narrativa que começava a se impor: a da criminalização dos estudantes e de seu movimento de ocupação da escola pública. Mas a disputa ainda é esta. E tudo indica que se tornará cada vez mais pesada: são os estudantes que estão no caminho do projeto de poder do governo de Michel Temer e das forças que o apoiam. E são também eles que podem atrapalhar o tráfego de quem corre para 2018, em especial o PSDB de Geraldo Alckmin.

A maior parte da imprensa ignorou o movimento de estudantes que, no final da semana passada, ocupavam cerca de 800 escolas públicas do Paraná e outras centenas pelo país, incluindo universidades, em protesto contra o projeto de reforma do ensino médio do governo Michel Temer (PMDB). Projeto apresentado como Medida Provisória, o que é só mais um sinal do DNA autoritário dos atuais ocupantes do poder. Os estudantes também ocuparam as escolas em protesto contra a PEC- 241, que congela gastos públicos por 20 anos e pode reduzir o investimento em educação e saúde, áreas estratégicas para o país, com impacto direto sobre os mais pobres.

 

A potência da voz de Ana Júlia é a da palavra que tem corpo”

 

A ocupação das escolas públicas era – e é – o movimento mais importante deste momento no país – e o espaço na imprensa, quando havia, era mínimo. Até o dia em que um estudante matou outro a facadas, dentro de uma das escolas. Aí as matérias apareceram. Havia então o que dizer. Transformar um fato isolado, com suas circunstâncias particulares, em estigma de todo um movimento levado adiante por milhares de jovens é uma especialidade conhecida do não jornalismo e da política sem ética. E então veio o discurso de Ana Júlia. Não pós-verdade, mas verdade. A verdade dela, do coletivo de estudantes que ela ali representava. A potência da voz de Ana Júlia é a da palavra que tem corpo.

As reações ao discurso de Ana Júlia expressam a época histórica que encontra sua melhor crítica numa série de ficção: Black Mirror (Netflix), com suas distopias sobre a vida atravessada pelas novas tecnologias. Há pelo menos duas maneiras de esvaziar a palavra de Ana Júlia esvaziando Ana Júlia. Uma delas é ridicularizá-la. O tremor da voz, do corpo, as lágrimas viram “argumentos” para fragilizar seu discurso. É o velho truque usado contra as mulheres, usualmente reduzidas a “histéricas” ou “loucas” ou “mimimi”. O todo que constrói a voz é atacado para deixar sua palavra, o verdadeiro alvo, sem lastro. Sem corpo. Desde que seu discurso viralizou, seus 16 anos de vida estão sendo vasculhados na tentativa de encontrar qualquer episódio que possa ser torcido, para destruir sua palavra destruindo-a. Se não existir, pouco importa, fabrica-se – como se viu em vídeos e sites pela internet.

Mas há também uma outra forma de esvaziar a palavra de Ana Júlia, e esta parece inofensiva, “do bem”. É transformar Ana Júlia em “heroína” ou na “esperança de um país”. Nessa narrativa, Ana Júlia é isolada do grupo que sustenta seu discurso, seu corpo. Ela, que representava muitos, que era multidão, passa a ser conjugada no singular. Sozinha, Ana Júlia pode muito pouco.

O outro efeito dessa “celebrização” é a exigência do que Ana Júlia não pode ser – e não pode ser nem quando pode muito. Num país mastigado por uma crise que também é de palavra, não há como transferir para uma jovem de 16 anos a responsabilidade por “salvar” o Brasil, transformando-a em encarnação da “esperança”, esta que também é tão superestimada. Neste lugar simbólico, qualquer um, mesmo que tivesse 80 anos de idade, estaria condenado ao fracasso. Inflar sua palavra é também uma forma de despontencializá-la.

 

“A única proteção contra esquartejamentos na arena pública é o coletivo”

 

Ao esclarecer que seu discurso foi preparado em conjunto com o grupo de estudantes, pedir para não tirar fotos sozinha e evitar falar de sua vida pessoal, Ana Júlia parece conhecer os riscos de ser convertida em celebridade instantânea. Se esta conversão fosse completada, sua palavra viraria produto. E Ana Julia seria consumida e cuspida, como já aconteceu com tantos. Nos dias que se seguiram ao discurso na Assembleia Legislativa do Paraná, em Curitiba, foi possível testemunhar muitas mãos, vindas de várias direções, tentando arrancar lascas da palavra-corpo de Ana Júlia. A única proteção contra esquartejamentos na arena pública é o coletivo, o grupo, o juntos – o movimento.

Em um momento do seu discurso de 10 minutos e 40 segundos, Ana Júlia menciona a morte do estudante Lucas Eduardo de Araújo Mota e afirma: “Vocês estão aqui representando o Estado, e eu convido vocês a olhar a mão de vocês. A mão de vocês está suja com o sangue de Lucas. Não só do Lucas como de todos os adolescentes que são vítimas disso. O sangue do Lucas está na mão de vocês, vocês representam o Estado”.

O presidente da Assembleia, Ademar Traiano (PSDB), como um daqueles tubarões rápidos em detectar um flanco de oportunidade, acreditou que havia ali uma chance de atacar a menina e devolver o plenário ao seu ambiente natural, aquele em que peixinhos dourados não confrontam velhos carnívoros. “Aqui você não pode agredir o parlamentar…. Eu vou encerrar a sessão, eu vou cortar a palavra… (…) Não afronte deputado, aqui ninguém está com a mão manchada de sangue, não”, inflamou-se. Encerrar a sessão, “cortar a palavra”, seria mesmo uma bênção para uma parcela dos parlamentares.

Ana Júlia seguiu defendendo as palavras: “Eu peço desculpa, mas o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) nos diz que a responsabilidade pelos nossos adolescentes, pelos nossos estudantes é da sociedade, da família e do Estado”. Nem precisaria pedir desculpas. Ela estava falando em português para pessoas que deveriam ter capacidade de interpretação de discursos em língua portuguesa. O deputado entendeu muito bem que ela não se referia a mãos literalmente “sujas de sangue” ou apontava uma relação direta com a morte do estudante, mas estava, sim, chamando atenção sobre a responsabilidade constitucional dos parlamentares em sua função pública. O deputado apenas preferiu apostar na burrice – e parece que ninguém perde no Brasil atual ao apostar na burrice.

 

“Com o projeto conservador avançando, os partidos progressistas derrotados nas urnas, as esquerdas brigando entre si, sobrou para os estudantes uma responsabilidade grande demais”

 

Há um ponto, neste episódio, que é justamente a responsabilidade dos adultos. Com a escola pública, com o Brasil. A ação dos estudantes tornou-se o principal movimento de resistência ao projeto não eleito do governo Michel Temer e das forças que o apoiam. Com a oposição fragilizada, o PT quebrado, capitais importantes como São Paulo e Rio nas mãos de conservadores e as esquerdas sem projeto e brigando entre si, sobrou para os estudantes secundaristas um peso grande demais. Neste sentido, foi um pouco assustador testemunhar adultos infantilizados tratando Ana Júlia como um oráculo de 16 anos. É preciso fazer melhor do que isso tanto para apoiar os estudantes, respeitando sua autonomia, quanto para construir um projeto capaz de ecoar no país.

A escola pública foi destruída e abandonada por décadas. Também o PT fez menos do que poderia, em especial nos ensinos fundamental e médio, durante os 13 anos que permaneceu no poder. Enquanto a classe média pôde matricular seus filhos nos colégios privados, ninguém se preocupou com os filhos dos mais pobres, que não tinham educação e viviam um cotidiano de violações. A violência começa pelo salário humilhante dos professores, o abandono dos prédios e uma escola que não educa, incapaz de qualificar o desejo e ampliar os mundos de crianças e adolescentes. Tudo indica que aqueles que ali estão não têm valor para o país, relegados ao lugar simbólico de restos.

Enquanto foi este o estado das coisas, bem poucos parecem ter se preocupado para além do discurso vazio, das palavras sem corpo sobre a importância da educação, que ressurgiam a cada eleição e que culminaram com “Brasil, Pátria Educadora”, o slogan do governo deposto de Dilma Rousseff. Dizer que “educação é prioridade” se tornou um falso consenso que, em vez de palavra, virou flatulência.

 

“As escolas públicas só se tornaram um problema para as forças conservadoras quando os estudantes as ocuparam para exigir educação de qualidade”

 

Ter escolas que não educam para os mais pobres nunca foi de fato um problema para as elites do país. Estava tudo bem assim. O problema surgiu quando os estudantes das escolas públicas de São Paulo entenderam que a “reorganização escolar” imposta pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), que fecharia mais de 90 colégios e remanejaria mais de 300.000 alunos, era um abuso. Ocuparam então as escolas no final de 2015. E, mais do que ocuparam, cuidaram do que ninguém cuidava – limpando, pintando e consertando – e disseram que queriam, sim, ser educados. Cuidar das escolas e reivindicar ensino de qualidade virou uma transgressão a ser punida. E a ser criminalizada.

A ideia de que as escolas podem ser ocupadas, num sentido profundo, por aqueles que dela dependem para ter oportunidades na vida, se alastrou pelo país. “De quem é a escola? A quem a escola pertence?” foi uma das primeiras perguntas de Ana Júlia aos deputados do Paraná. É uma grande pergunta, e os estudantes têm uma resposta a propor.

Movimentos de “Ocupa Escola” começam, acabam e recomeçam em diversos estados do Brasil desde o ano passado. A ocupação das escolas do Paraná coincidiu, porém, com um momento ainda mais delicado do país: um projeto não eleito no governo federal, apoiado por um Congresso corrompido, tocando com grande rapidez reformas cruciais, como a PEC-241, sem debate com a sociedade.

Quem está, de fato, no caminho deste projeto de poder, tanto quanto das ambições de algumas figuras nacionais, neste momento de oposição fragilizada ou mesmo atarantada? Os estudantes secundaristas com seu “Ocupa Escola”, uma luta que ganhou uma dimensão muito maior do que eles poderiam prever. Assim, há várias forças tentando destruir o movimento, seguindo a cartilha de sempre: criminalizando-o.

É importante perceber que, de repente, a escola, com a qual bem poucos se importavam para além do discurso vazio, virou o alvo de ataques conservadores bem organizados. “Escola Sem Partido”, o projeto-aberração que busca criminalizar o pensamento crítico dentro das escolas e, portanto, acabar com a possibilidade de qualquer processo educativo, é uma das ofensivas em curso. “Escola Sem Partido é falar pros jovens, pra sociedade, que querem formar um exército de não pensantes, um exército que ouve e baixa a cabeça”, disse Ana Júlia aos deputados do Paraná.

O “sem partido”, vale prestar muita atenção, é a malandragem do momento. Ela busca encobrir todos os partidos que estes projetos tomam – e vender uma suposta neutralidade ideológica que não têm. Sem contar a crescente criminalização dos partidos políticos, tanto como conceito quanto como atores do processo democrático, algo que merece uma atenção exclusiva em outro artigo.

Entre as tentativas de deslegitimar o movimento dos estudantes, a mais corriqueira é anunciar que os alunos são “manipulados” e “aparelhados” justamente por partidos de esquerda. Fizeram o mesmo com Ana Júlia tão logo seu discurso viralizou na internet. É triste assistir a ela e a outros estudantes terem de explicar de novo e de novo para jornalistas e mesmo para parlamentares que o movimento é “apartidário” – o que é diferente de “sem partido”.

 

“É impressionante que ainda funcione essa nova versão dos comunistas comendo criancinhas enquanto o Brasil se torna o país do mais um direito a menos por dia”

Não fosse parte da população tão estúpida, perceberia que os partidos identificados com a esquerda foram derrotadas nas urnas nestas últimas eleições e que o projeto conservador vem atropelando o país de forma acelerada, transformando o cotidiano em mais um direito a menos por dia. Lula teria ligado para Ana Júlia para dizer que estava “emocionado” com o movimento? Era Lula que precisava disso, não Ana Júlia e o movimento que representa. Se tivesse preocupado com a causa dos secundaristas mais do que com a sua sobrevivência política, Lula teria inclusive se abstido deste telefonema.

Assim, é impressionante que ainda funcione essa nova versão dos comunistas que comem criancinhas enquanto os direitos da população estão sendo engolidos, digeridos e defecados em Brasília pelas forças que, mais uma fez, refazem o pacto conservador para manter os privilégios intactos. A tática de inventar um inimigo e alimentar com ele o medo da população é tão antiga quanto a humanidade. Que ainda funcione pode ser explicado por aqui pela péssima educação pública, que pode piorar ainda mais, como alertam os estudantes.

 

“O MBL parece bem mais interessado em criminalizar os estudantes que ocupam as escolas do que em denunciar os corruptos que seguem dando as cartas em Brasília”

 

O Movimento Brasil Livre (MBL), um dos protagonistas das manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff, tem atuado pela desocupação das escolas no Paraná e se esforçado para criminalizar o movimento dos estudantes. Aqueles que levantaram a bandeira da “corrupção” nas ruas do país, enquanto tiravam fotos junto com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), depois da deposição de Dilma parecem bem pouco interessados nos corruptos que seguem em Brasília dando as cartas. Mas, em contrapartida, estão muito empenhados em tirar os estudantes do caminho. Vale a pena observar com toda atenção que partidos o MBL apoia. Neste domingo, por exemplo, ajudou a eleger o novo prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), numa eleição que teve vidros estilhaçados e até uma morte, ambos os episódios ainda mal explicados. É a primeira vez que o PSDB comandará a capital gaúcha.

Com a Lava Jato rondando José Serra e Aécio Neves, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, vai chegando cada vez mais perto de ser o candidato do partido à presidência em 2018. Saiu das eleições de 2016, onde arriscou-se e ganhou, muito mais fortalecido. Se o PSDB foi o vencedor do pleito municipal, Alckmin – ao eleger João Doria prefeito de São Paulo ainda no primeiro turno, contrariando outros setores e caciques do partido, e ampliar a presença de sua base aliada nas prefeituras de outras cidades e regiões do estado – foi o campeão. Impressionante que ainda chamem de “picolé de chuchu” um dos políticos mais complexos – e assustadores – do Brasil atual.

 

“Alckmin, o vencedor das eleições de 2016 que quer vencer em 2018, só perdeu batalhas significativas para os estudantes”

 

Alckmin se reelegeu governador no primeiro turno, em 2014, em plena crise hídrica, negando a crise hídrica. Antes, em 2013, os protestos nas ruas aumentaram depois que a polícia de Alckmin arrebentou manifestantes e também jornalistas. Mas, em pouco tempo, com a ajuda de parte da imprensa, os manifestantes foram convertidos em “vândalos”. E, mais uma vez, Alckmin se safou.

Nos últimos anos, a única tentativa de Alckmin que não colou foi a criminalização dos estudantes que ocuparam as escolas públicas de São Paulo no final de 2015. Sua polícia começou a arrebentar crianças e adolescentes nas ruas e as imagens eram chocantes demais mesmo para os mais crédulos. Alckmin, o assustador, viu sua popularidade cair. O governador perdeu aquela batalha, e perdeu para adolescentes.

Os estudantes da escola pública estão no meio do caminho do projeto de poder de muita gente inescrupulosa. Com seus corpos franzinos. Com sua voz trêmula. Tão sós num momento em que os adultos que poderiam estar ao seu lado têm dificuldade para compreender a gravidade do momento e assumir responsabilidades.

A Favelada

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Por Luís Fernando Praga

Num desses contrastes brasileiros, ela morava na favela ao lado. A mãe era diarista naquele bairro rico. O pai, ela jamais conheceu.

Quando era o dia das bruxas, sempre aparecia pra pedir doces. Desde os 6 aninhos, roupas péssimas e pés descalços que pareciam não sentir o chão quente, ela não ligava para humilhação que sofria das crianças limpas e bem educadas dali. Não se incomodava de ficar no fim da fila, de ter portas fechadas na cara, de ver expressões de nojo e ódio de alguns moradores e nem de ficar só com as sobras. Agradecia com um sorriso inibido e baixava os olhos.

Voltava pra casa à noite, sacolinha meio cheia, que para ela parecia um tesouro. Comia doces como nunca e levava um bom tanto para repartir com a mãe, que sempre chegava cansada.

Para a inocência de Cristina, o dia das bruxas representava uma das poucas lembranças boas da infância.

A mãe era jovem, 23 anos e trabalhava desde os 15 em casas de família no bairro nobre que avizinhava a favela. Não teve tempo nem vontade de concluir os estudos. Um dia voltou pra casa chorando. Havia sido estuprada no emprego. A mãe da mãe, muito religiosa, a colocou pra fora de casa. Ela se virou como pôde, arranjou um barraco onde pariu Cristina sozinha.

Iuri morava com os pais numa mansão suntuosa e não via com bons olhos a favelada que invadia as ruas de seu bairro para “roubar” os doces que, por mérito, deveriam ser dele e de seus amigos.

A mãe de Iuri recomendava cuidado e distância da favelada, que podia transmitir doenças, roubar, ou andar junto de algum adulto que o sequestrasse ou apresentasse drogas.

Cristina também evitava Iuri por medo.

Passada aquela data festiva, se viam novamente apenas no ano seguinte.

Naqueles intervalos de 365 dias, as duas crianças levavam suas vidas de formas diferentes.

Iuri sofria com a presença de gente como Cris, que se amontoava nas favelas da cidade. Gente violenta que, segundo seus pais, matava, roubava e sequestrava pessoas de bem o tempo todo.

Cris sofria com a falta de água, de saneamento básico e com as balas perdidas.

Iuri sofria por ter passado apenas 10 dias na Disney aquele ano, chorava, batia os pés e exigia algum bônus dos pais.

Cris sofria com o transporte público precário. Muitas vezes o ônibus não passava e ela perdia aula. Ela adorava sua escola simplesinha. Lá aprendera a ler precocemente. Era tímida, mas questionadora. Quando não podia ir, ficava triste e frustrada. Voltava para casa e aguardava algum carinho da mãe, que sempre chegava cansada, triste, frustrada e logo dormia, sem carinhos.

Iuri tinha um motorista particular e frequentava a melhor escola da cidade. Gostava de ser o centro das atenções, como seus pais o criaram para ser. Fazia bullying com meninas, com negros, com gordos e com gays e ficava muito indignado e infeliz quando algum professor chamava sua atenção.

Iuri sofria a vida toda, assim como seus pais e seus avós, com a ameaça comunista, que planejava dividir todas as suas posses com pessoas como Cris. Isso fez Iuri crescer com medo e ódio, assistindo televisão e pedindo a Deus que livrasse o seu amado Brasil daquele tipo de gente.

Cris também sofria algumas privações, passava frio, fome e adoecia facilmente. Nunca encontrara ninguém com a disposição de ajuda-la, muito menos de repartir as coisas dos ricos com ela. Não via ninguém na favela melhorar de vida graças à ajuda de quem quer que fosse. Nunca ela, sua mãe ou sua avó receberam qualquer tipo de benefício trazido por algum comunista e jamais vira um comunista na vida.

Iuri sofria e culpava o governo quando ocasionalmente a energia de seu bairro acabava. Era difícil receber os amigos sem videogame e ar condicionado. “País de merda!”, bradava Iuri. Fazia birra para os pais e exigia outro bônus. Os pais faziam a vontade de Iuri, não sem antes dizerem “país de merda!”.

A vida também não era um mar de rosas para Cris, mas ela nunca teve vontade de chamar o Brasil de “país de merda”. Para ela, mais do que refletir a condição do país, essa frase refletia o estado emocional de alguém descontrolado pelo estresse.

Aos 13 anos Cristina ainda foi ao dia das bruxas coletar doces naquele bairro de ricos onde a luz só acabava de vez em quando. Já ia voltar pra casa quando foi surpreendida por um grupo de meninos que roubou seus doces, cuspiu em seu rosto e a espancou. No final, Iuri disse para que ela nunca mais voltasse, a não ser para limpar as privadas.

Cristina chegou em casa profundamente ferida. A mãe perguntou dos doces e Cris contou, chorando, que não havia conseguido nenhum aquele dia. A mãe sorriu com olhos mareados pela tristeza da filha, disse que tudo bem e logo dormiu.

Naquela noite Cris sentiu que o mundo a odiava. Ela era preta num país onde a mídia exaltava que o bonito era ser branco. Ela era pobre num mundo que matava e prendia os pobres e onde ter sucesso na vida era ser rico. Ela era mulher num mundo machista de valores deturpados.

Deitou-se no colchonete precário e chorou muito. Tapou os ouvidos pra não ouvir seu choro, nem a briga e nem o amor dos vizinhos, nem cachorros latindo, nem a roda de samba e nem o tiroteio. Continuou chorando pelo desamor do mundo. Chorou mais, porque apesar disso tudo, ela não sabia o motivo, mas ainda desejava viver e isso tornava tudo mais difícil.

O sono não veio, o choro não passou e, naquela madrugada mágica, naquele triste barraco, ficaram apenas Cris e ela mesma.

A mão que tapava a orelha sem garantir o silêncio e começou a enrolar um dedo nos cabelos enrolados. Ela tentou se dar carinho. Recebeu, de si própria, seu primeiro cafuné. Ela amou acariciar seus cabelos e seu rosto e o fez com uma vontade libertadora. Acompanhou, delicadamente, com a ponta dos dedos, as lágrimas que corriam do canto do olho até o canto da boca. Ela amou se tocar, amou o fato de existir algum amor. Ela se amou profundamente e amou experimentar o prazer. Foi feliz naquele instante que tingiu pra sempre o mundo de outras cores.

A partir daquela madrugada Cristina aprendeu que podia fazer bem a si própria, por mais que Iuri e seus amigos a ofendessem e que dissessem de suas limitações. Por mais que nunca aparecesse nenhum comunista para torná-la menos pobre. Por mais que nenhum governo pudesse resolver seus problemas ou sequer soubesse de sua existência. Ela sentiu que era capaz de amar e ser feliz e sentiu a importância disso em sua vida. Desejou sofrer menos e entendeu que isso estava muito em suas mãos.

Passou a ler ainda mais, descobriu que havia gente que não cultivava ódios ou preconceitos e que ela era esse tipo de gente.

Conversou mais com a mãe, contava tudo o que aprendia na escola, na vida e dentro de si mesma. Fizeram uma horta no quintal. Criaram uma cooperativa de costureiras na favela e passaram a produzir as próprias roupas e a se vestir com dignidade. Faziam escambo das coisas que necessitavam e a mãe de Cristina deixou de ser explorada, passou a ter mais tempo com a filha para trocarem afetos e conselhos.

Cristina aprendeu que nem todo rico era cruel, mas a riqueza mal distribuída era sempre crueldade.

Aprendeu que nem todo pobre era bondoso e correto.

Aprendeu que havia muitos pobres no mundo, porque só esse tipo de gente se prestaria ao papel de manter os ricos ainda mais ricos, trabalhando por migalhas antes de uma morte precoce.

Entendeu que a miséria era o combustível da fortuna.

Aprendeu que havia pobres armados que assaltavam, matavam e faziam arrastões. Havia ricos que desviavam dinheiro público, queimavam mendigos que dormiam, estupravam e matavam travestis, mulheres e homossexuais.

Aprendeu que os ricos, e não os pobres, fomentavam a indústria armamentista e as guerras. Que as guerras matavam muito mais pobres do que ricos, e que das guerras vinham as armas que perpetuavam a violência no mundo.

Aprendeu que o ódio era uma droga legal e de efeito devastador sobre o cérebro humano, aceita e consumida livremente pela sociedade, e que bastava respirá-lo um pouco para o ódio viciar. Viu que a mídia fazia apologia constante a essa droga, polarizando opiniões, acirrando rivalidades, marginalizando diferenças, distorcendo a verdade e manipulando informações. Era um povo desunido que mantinha o sistema vigente.

Ela não quis aquilo para seu cérebro nem para seu coração. Preferiu explorar os limites daquele amor que ela sabia ser poderoso e possível.

Aprendeu que amor e ódio não escolhiam classes sociais.

Aprendeu sobre liberdade, sustentabilidade e solidariedade. Sobre as diferenças e a tolerância.

Estudou a justiça, a meritocracia e a hipocrisia.

Aprendeu sobre a luta das mulheres, e que a origem do dia das bruxas vinha de uma festa pagã, criada para louvar a uma Deusa Mãe, a Terra, em gratidão por uma colheita farta.

Aprendeu que houve um tempo em que bruxas eram mulheres livres e pensantes, que ameaçaram os desmandos de uma igreja e de uma sociedade machistas e gananciosas. Que elas foram queimadas em fogueiras de forma covarde e estúpida, por gente ignorante e cheia de medos, a fim de criar gerações de mulheres temerosas e submissas.

Aprendeu que gente com medo vivia uma vida limitada, atrelada a seu medo. Que o medo se convertia em submissão ou em agressividade. Que, percebendo isso, algumas pessoas e instituições se especializaram em semear e explorar o medo.

Lembrou-se de Iuri e seus amigos.

Envergonhou-se de mendigar doces por tanto tempo, mas depois riu da criança que fora.

Passados alguns anos, voltaram a se encontrar numa sala de aula de uma escola pública. Iuri não a reconheceu, com toda aquela nova auto estima e segurança, mas encantou-se por ela quando a viu chegando para o Exame Nacional do Ensino Médio.

Embora tivessem a mesma idade, morassem perto um do outro, tivessem cruzado seus caminhos várias vezes e além até de não saberem, mas serem filhos do mesmo pai, dali pra frente a vida os separou definitivamente.

Cristina continuou acreditando no amor, no conhecimento e nas mágicas surpresas da vida. Passou em uma boa faculdade e se torna uma mulher mais livre e plena a cada dia.

Iuri zerou na redação, administra as empresas do pai e continua viciado em ódio, cultivando a ignorância e sofrendo de medo.


Texto originalmente publicado em novembro de 2015, em Carta Campinas.

Ciências para educação

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Por Mozart Neves Ramos

Os anos 1990 ficaram marcados como a década do cérebro, graças aos novos conhecimentos trazidos pela neurociência. Hoje sabemos que as crianças e os adolescentes não sustentam a atenção da mesma forma que os adultos. E há uma base neurobiológica para isso. Até o início da vida adulta, o córtex pré-frontal, a parte inferior do cérebro, responsável por inibir alguns comportamentos, ainda não está completamente formado. Assim, é mais difícil se manter concentrado em assuntos que, ao menos naquele momento, não parecem tão relevantes. A neurociência tem nos mostrado que na vida adulta contamos com vasto estoque de atalhos mentais que nos permitem pular detalhes. No entanto, ainda temos a capacidade de aprender coisas novas, assim como as crianças.

Aprender envolve inúmeras estruturas cerebrais e funções cognitivas. A neurociência e a psicologia cognitiva distinguem mecanismos e habilidades relacionadas a esse processo — atenção, memória de trabalho, emoção, inteligência. Existe também um ritmo biológico para a aprendizagem, em conformidade com o sono, a temperatura corporal, enfim, as condições físicas que permitem que estejamos mentalmente aptos para prestar atenção, pensar, elaborar. Por exemplo, as emoções são fundamentais para a motivação, para a vontade de aprender. Há muito a aprender com a neurociência: o modo como a qualidade do sono influencia a nossa capacidade de armazenar informações, ou ainda como um aluno disléxico pode ter maiores chances de aprender do que no passado.

Mas esses novos achados da ciência ainda não chegaram à escola. Não levar esses novos conhecimentos ao professor é o mesmo que não lhe permitir o direito ao conhecimento, tão necessário para fazer cumprir o direito legal da aprendizagem para todos os alunos. Por isso mesmo, o Instituto Ayrton Senna, em parceria com o Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ (ICB), o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), vem apoiando a estruturação e o desenvolvimento da Rede Nacional de Ciência para Educação (Rede CpE), que comporta mais de 50 importantes grupos de pesquisa de diferentes áreas do conhecimento, unidos pelo objetivo de compartilhar conhecimentos e realizar pesquisas científicas que possam promover melhores práticas e políticas educacionais baseadas em evidências. Trata-se, portanto, de uma rede de cientistas com a missão de realizar pesquisa translacional em Educação, cujo desafio maior é fazer chegar esses novos conhecimentos ao chão da escola.

Um dos primeiros atos da Rede CpE foi realizar um amplo censo nacional dos pesquisadores que já atuam na interface entre ciência e educação no Brasil. A etapa seguinte será a construção de uma plataforma digital, de consulta aberta, na qual será possível realizar buscas de temas e de pesquisadores com tais características de atuação. Esse esforço inicial já identificou 25 mil pesquisadores com estudos de potencial aplicação em educação no país, 2.683 perfis altamente produtivos e colaborativos, e 60 grupos de pesquisas que foram convidados e já fazem parte da Rede CpE, liderada pelo professor Roberto Lent, da UFRJ.

Para o próximo biênio 2016/2017, a Rede CpE focará seus esforços em quatro áreas de atuação: (i) alfabetização infantil, fluência leitora e numeração; (ii) competências socioemocionais, aprendizado metacognitivo e tecnologia, em colaboração com o eduLab21 — um laboratório de inovação dedicado à produção e disseminação de conhecimento científico para a melhora da educação pública no Brasil (criado pelo Instituto Ayrton Senna, o eduLab21 é uma rede multidisciplinar de instituições de pesquisa ao redor do mundo, que tem como missão contribuir para que todas as crianças e jovens tenham acesso a uma educação que prepare para a vida no século XXI); (iii) desenvolvimento de estratégias com base científica para a educação de crianças com algum tipo de deficiência, crianças com talentos especiais e portadores de transtornos de aprendizagem; e, finalmente, (iv) investigação do papel de fatores fisiológicos na aprendizagem.

Nesse campo da neurociência, não podemos também deixar de destacar o importante papel que a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal vem desenvolvendo para promover a primeira infância no país, apoiando a implementação de políticas públicas para essa fase tão decisiva na vida de nossas crianças. Para um país como o Brasil, com tantos déficits de aprendizagem escolar, esse pode ser um caminho para alavancar os índices de aprendizagem na educação básica, e, por outro lado, um novo espaço de atuação para a ciência e a tecnologia nacionais.


Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense,  em maio de 2016.

Gaudêncio Frigotto: escola sem partido

Professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) explica quais os riscos que o programa Escola sem Partido traz à educação brasileira. A entrevista foi concedida durante o debate “Escola sem Partido”, realizado em 07 de outubro de 2016, na Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas/SP.

Recentemente, Frigotto publicou o texto Escola sem partido”: imposição da mordaça aos educadores, em que analisa criticamente o programa e o identifica como o projeto da escola do “partido absoluto e único”. “Partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto, da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres, etc.”, explica.

A produção da violência, família e educação

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A afirmação de que a sociedade brasileira é autoritária e violenta contradiz a ideia do brasileiro cordial. Os estudos históricos têm mostrado cada vez mais os paradoxos de uma cultura marcada pela violência, seja no seu passado escravocrata, no extermínio dos índios ou na expulsão das populações rurais do campo para as periferias das cidades e a não incorporação dessa população à vida urbana e a seus benefícios como saúde, educação, emprego, moradia, direitos sociais e outros.

Os mecanismos de produção da violência e os modos de lidar com a questão serão o foco do VII Seminário Integração-Serviço-Pesquisa Política Pública CREN-UNIFESP-IEA, proposto pelo Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza do IEA.

Marcado para o dia 21 de outubro, das 9h às 17h, o debate traz como tema A Produção da Violência, Família e Educação. Gratuito e aberto ao público, requer inscrições via formulário e terá transmissão ao vivo pela internet. O encontro acontece na antiga Sala do Conselho Universitário.

As formas de ocupação do espaço urbano pelas populações mais pobres revelam o aumento da violência nos vários âmbitos da vida social. As periferias urbanas, as favelas, os cortiços e outros tipos de ocupações clandestinas são o resultado de relações sociais marcadas por conflitos sociais não resolvidos.

A formação histórica dos grupos e classes sociais no Brasil, bem como do próprio estado nacional, repercutem na atual constituição do tecido urbano e na composição dos núcleos familiares. Com isto, o grupo de pesquisa propõe problematizar o entendimento das formas de violência e suas causas dentro das relações familiares e escolares, bem como na organização dos serviços públicos e nas políticas públicas.

O debate buscará focar também o lugar da educação como espaço de reprodução da violência, bem como de discussão e transformação das experiências e possibilidades sociais.

 


A Produção da Violência, Família e Educação
21 de outubro, das 8h30 às 17h
Antiga Sala do Conselho Universitário, Rua da Praça do Relógio, 109, térreo, Cidade Universitária, São Paulo
Aberto ao público e gratuito; inscrição via formulário.— Transmissão ao vivo pela internet
Informações: Sandra Sedini (sedini@usp.br), telefone (11) 3091-1678
Página do evento: http://www.iea.usp.br/eventos/a-producao-da-violencia-familia-e-educacao

O dia do Professor

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Por Luís Fernando Praga

Joãozinho pega o coletivo diariamente às 5:30. Às 6:10 apanha o segundo ônibus que o deixa na porta da escola às 7:00. Cumprimenta alguns colegas e com sua pesada mochila entra ligeiro na sala para não atrasar o começo da aula. O professor Joãozinho atravessa a cidade, de uma periferia à outra para viver.

Viver, para Joãozinho, é fazer com que sua vida tenha algum sentido. É sentir prazer em aprender e poder ajudar pessoas a extraírem prazer do aprendizado. É transferir e trocar conhecimentos. É encontrar gente. É ter o que comer e onde morar dignamente. É tratar e ser tratado com respeito.

Jairo para em frente à escola e nota os olhares das meninas quando sai de seu carro esporte. Os meninos comentam e Jairo sente-se bem com a admiração das garotas e com a inveja dos garotos. Jairo mora a duas quadras daquela conceituada escola particular e, atraindo olhares, entra na sala atrasado e sem pedir licença à Cláudia, que pausa a explicação para que Jairo cumprimente e conte as novidades ao colega do lado.

Joãozinho tem uma classe com 40 alunos pobres, com histórias de privações e sofrimentos que comprometem o aproveitamento escolar. O professor sente que apesar de seu empenho, pouco do que diz é aproveitado. Nota, entretanto, que alguns alunos, como Janice, têm um brilho diferente nos olhos. É esse brilho, vindo do fascínio por aprender, que justifica todo o esforço empreendido por aluno e professor para estarem naquele lugar.

Cláudia vai pra escola de metrô e tem uma sala com 25 alunos, todos ricos, com histórias de abundância e prosperidade que comprometem também seu bom aproveitamento escolar. Cresceram acreditando ser melhores e mais dignos de viver do que outras pessoas. Os alunos de Cláudia se enxergam superiores a ela e consideram que não precisam de nada daquilo. Alunos com o olhar especial de Janice também existem naquela classe, como Humberto, e era apenas a eles que chegavam as palavras de Cláudia.

Apesar do desempenho escolar abaixo da média, os alunos de João são em regra muito obedientes, pois tiveram berço. Nasceram no berço de uma sociedade que afirma a todo instante que eles são piores que os demais. Que nunca conseguirão ter um carro ou uma casa como os da novela. Que se pegarem alguma doença banal irão morrer, pois não são ricos. Que jamais chamarão a atenção daquela paixão secreta, porque suas roupas são simples e puídas. Então, criados num berço que os fez crer que não valem nada, são submissos e passivos… enquanto não explodem.

Os alunos de Cláudia também tiveram berço. Em seu berço, Jairo e a maioria de seus colegas aprenderam que podiam de tudo, que eram a nata, que eram exemplos de sucesso e que todos desejam ser como eles. Aprenderam que estavam protegidos, pelas leis, pelo dinheiro e pelos muros e carros blindados, das injustiças, das doenças e dos pobres. Aprenderam nesse berço que são melhores que os demais e não devem prestar contas a gente de castas inferiores como Cláudia.

É complicado para João fazer seus alunos acreditarem que não são inferiores a ninguém, apesar do que dizem a sociedade e as novelas.

Cláudia tem dificuldades em mostrar a seus alunos que ter dinheiro não os faz superiores a seus semelhantes.

Enfrentar o desrespeito, a humilhação, a violência física e o assédio sexual de seus alunos é uma condição inerente ao trabalho de Cláudia. Ela precisava viver e seu viver é como o viver de João. Para comer e morar com dignidade ela se submete a dar aulas naquela escola.

Para completar-se como ser humano, em seu horário de almoço, Cláudia pega duas conduções, almoça no ônibus e chega à mesma escola da periferia onde o professor Joãozinho leciona de manhã.

João, para se alimentar e morar dignamente, em seu horário de almoço faz o caminho inverso e vai lecionar na escola particular onde Jairo estuda.

Quando Cláudia dá aulas na escola da periferia ela é mais respeitada do que na escola particular, mas ainda assim sofre abusos, pois alguns daquele alunos submissos lembram-se de terem aprendido que são inferiores a todo o resto, menos à mulher, e Cláudia é a oportunidade que esperavam para demonstrar algum tipo de superioridade e poder.

Mas o olhar de Janice misteriosamente compensa o perigo e a humilhação sofridos e Cláudia não desiste.

Jairo fica feliz quando Joãozinho entra na sala, pois agora pode exercitar seu preconceito de outra forma. Além de ser mais rico e poderoso que João, Jairo é branco e João é preto. A ignorância de Jairo o leva a entender aquilo como algo que rebaixe ainda mais seu professor, então Jairo abre sua caixa de ferramentas fascistas e piadas cruéis.

O olhar e os questionamentos de Humberto permitem que João releve as inconveniências infantis de Jairo e suporte passar por tudo aquilo.

À noite João e Cláudia se encontram em uma importante avenida da cidade. São grandes amigos e reivindicam melhores condições de trabalho para a categoria. Juntos, apanham de policiais que foram seus alunos naquela escola da periferia e que seguem ordens de políticos que foram seus alunos naquela escola particular.

Chegam a suas casas bem tarde, cansados e feridos, imaginando a difícil tarefa de enfrentar o dia seguinte. Não sabem explicar porque devem ir, mas sabem que irão para ver novamente os olhares de Janice e Humberto.

Percebem que Janice e Humberto são alunos diferentes, que não se deixaram iludir pelas supostas evidências sociais que os colocam em patamares evolutivos diferentes. São alunos que sabem que a sociedade está doente e acreditam que a cura está no conhecimento.

Cláudia e João ajudaram aqueles dois alunos a despertarem para o fato de que há uma infinidade de ignorâncias a se esclarecer.

Isso os tornou questionadores de certezas impostas e mais tolerantes com as ignorâncias alheias. Isso os impediu de se tornarem submissos a arbitrariedades ou arrogantes com quem passasse por situação de fragilidade. Isso os fez questionar os donos da verdade e os donos de pessoas.

Janice e Humberto não acreditam mais na sociedade que diz e age como se os negros, as mulheres e os pobres fossem inferiores. Não creem que alguém valha mais por ter mais dinheiro. Não se veem como superiores ou inferiores a ninguém, mas como gente, e sabem que gente tem sempre o que aprender e o que ensinar.

Professores como João e Cláudia conseguiriam facilmente outra ocupação que lhes garantisse um salário melhor para alimentar seus corpos, mas nenhuma ocupação poderia substituir aquela vocação, a única capaz de lhes provir um salário que alimente suas esperanças.

O tempo passou e João e Cláudia ainda lecionam. Ainda passam por situações difíceis e convivem com a injustiça diariamente, mas agradecem pela escolha que fizeram e se comovem nessa data, quando recebem a cada ano, mais e mais mensagens de Janices e Humbertos, cheias de carinho, notícias, questionamentos, reconhecimento, gratidão e no final há sempre um: “Você mudou a minha vida e isso não tem preço!”

Obrigado, prô!

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Texto originalmente publicado em outubro de 2015, em Carta Campinas.